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ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 451-470, set./dez. 2018
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
A cultura escolar do campo e o ensino da
matemática
RESUMO
Maykon Jhonatan Schrenk
maykon_schrenk@hotmail.com
orcid.org/0000-0001-8327-9147
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (Unioeste), Cascavel, PR, Brasil
Barbara Winiarski Diesel Novaes
barbaradiesel@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0002-7763-7777
Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), Toledo, PR, Brasil
Com o objetivo de identificar a presença da cultura escolar do campo no ensino de
matemática (anos finais do ensino fundamental) em uma escola situada na zona rural, a
presente pesquisa foi fundamentada no aporte teórico-metodológico da História Cultural
por meio do conceito de cultura escolar (JULIA, 1990), tendo como fontes: cadernos de
matemática dos estudantes do Ensino Fundamental (anos finais); imagens das atividades
docentes; Projeto Político Pedagógico (PPP); planejamento do professor de matemática;
legislação pertinente; entrevistas com o diretor da escola, com a professora de matemática
do Ensino Fundamental e com a pedagoga. O currículo mostrou-se pronunciadamente
urbanocêntrico especificamente em relação às aulas de matemática. Apesar de uma forte
cultura escolar do campo estar presente na escola investigada, há pouca presença dessa
cultura especificamente no ensino da matemática. Como reflexão final, nos perguntamos
se, em nossas escolas urbanas, não estamos precisando de elementos culturais próprios das
escolas do campo: sentimento de pertencimento, envolvimento da comunidade, formação
de lideranças, interdisciplinaridade, trabalho em grupo e valorização das práticas
matemáticas locais.
PALAVRAS-CHAVE: Educação do Campo. Educação Matemática. Cultura Escolar.
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INTRODUÇÃO
Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,
cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo
passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz, de inocência e
virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações - de
saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundalidade e ambição; o campo
lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre campo e cidade,
enquanto formas de vida fundamentais, remonta à Antiguidade Clássica
(WILLIANS, 2011, p. 11).
Ao iniciar o texto, refletimos sobre a citação de Raymond Williams do livro “O
Campo e a cidade na história e na literaturaque mesmo se referindo a um caso
inglês do período da revolução industrial nos ajuda a compreender a vida no
campo e alguns entendimentos cristalizados no senso comum pedagógico. Se o
campo é entendido como um lugar de atraso, ignorância e limitação, qual seria o
entendimento para uma Educação do Campo?
A Educação do Campo
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durante muito tempo foi deixada em segundo plano
nos discursos sobre educação no Brasil. Um marco na retomada da luta ensino de
qualidade, pelo respeito a suas raízes culturais e pelo entendimento de suas
singularidades, foi a Primeira Conferência Nacional por uma Educação Básica do
Campo promovida em 1998 pelas instituições Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), a Universidade de Brasília (UnB), a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e
a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Participaram desse evento educandos e educadores do MST, da agricultura
familiar, dos indígenas, dos povos da floresta, dos ribeirinhos, quilombolas, dos
sindicatos de trabalhadores rurais (ANHAIA, 2011 apud BRASIL, 2014). A
Conferência surgiu como uma alternativa para ampliar a discussão sobre a
educação no meio rural brasileiro (BRASIL, 2014, p. 9).
Em relação a como trabalhar a matemática escolar numa escola do campo,
concordamos com D’Ambrósio (2005, p. 42) quando afirma que: reconhecer e
respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do
outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes”. Para Ubiratan
D’Ambrósio a matemática deve ser entendida nas suas várias dimensões:
conceitual, histórica, cognitiva, epistemológica, política, cotidiana, educacional.
Sua teoria permite trabalhar a matemática respeitando as especificidades da
Educação do Campo e suas implicações didático-pedagógicas.
Conforme crescemos, adquirimos saberes por meio de experiências, ou seja,
da nossa vivência na sociedade, na escola, no convívio familiar. Para os alunos que
moram no campo, esses tornam-se importantes para seu desenvolvimento, assim
como para crianças em outros contextos. Esses saberes não podem ser
desprezados, principalmente em uma aula de matemática, embora algumas vezes
isso ocorra. Que matemática pode ser considerada legítima? uma hierarquia
entre a matemática escolar e a matemática do campo? A etnomatemática
considera como conhecimento o que rotineiramente não é reconhecido como tal
e considera a existência de outras matemáticas (BARBOSA, 2014).
[...] para sermos mais precisos, deveríamos dizer que aquilo que chamamos
de Matemática é a Matemática acadêmica. Na perspectiva da
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Etnomatemática, existem outras formas de produzir significados
matemáticos, outras formas que são igualmente Etnomatemáticas, pois
manifestações simbólicas de grupos culturais (KNIJNIK, 2000).
A Etnomatemática, por meio das pesquisas realizadas e do campo que abriu,
deu legitimidade a outros modos de produção de significado para aquilo que se
chama matemática (BARBOSA, 2014; KNIJNIK, 2000).
Sem hierarquias, sem diminuir a legitimidade das especificidades de uma
matemática do campo, percebemos que considerar essas diferenças pode ser rico
para a aprendizagem. Essa bagagem pode contribuir para o desenvolvimento do
aluno, o crescimento da sua confiança e motivação na busca do saber na aula de
matemática.
Bzuneck (2000, p. 9 apud MORAES, VARELA, 2007, p. 3) afirma que “a
motivação, ou o motivo, é aquilo que move uma pessoa ou que a põe em ação ou
a faz mudar de curso” e o fato de utilizarmos a vivência do aluno no ensino da
matemática tende a motivá-lo, dando chance e segurança para ele mostrar o que
sabe. Segundo Moraes e Varela (2007), “se o conteúdo da aula é interessante
para a criança, ela o associa com seus conhecimentos e experiências prévias” (p.
13), e é essa uma das metas de se utilizar a vivência no campo na sala de aula.
Tendo como base a problemática anunciada, os primeiros questionamentos
que nos ocorreram: Seria possível a matemática escolar usufruir do campo para
auxiliar no aprendizado dos educandos? Como utilizar a matemática no campo,
como ensiná-la para alunos que vivem no campo?
A legislação existente sobre a Educação do Campo (BRASIL, 1996, 2002, 2014;
PARANÁ, 2006) desmistifica a escola apenas situada no campo. A Educação do
Campo, além de se encontrar no campo, segundo Antunes-Rocha e Martins (2009),
também significa aprender com a terra, com o campo, os modos genuínos de olhar
para a vida do homem em sintonia com a natureza. Além disso, significa conhecer
diferentes modos de organização da sociedade e das lutas políticas, e ainda
reconhecer o poder dos gestos, das cores, das imagens próprias do campo como
saberes legítimos.
É de extrema importância que as atividades de matemática envolvam o
conhecimento que o aluno possui, porém, segundo o Plano Nacional de
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), “quando apontamos para a necessidade de
incorporarmos a cultura dos alunos em nossas práticas pedagógicas, não significa
criarmos ‘probleminhas’ ruralizantes” (BRASIL, 2014, p.24). Esses problemas
ruralizantes seriam, por exemplo: realizar uma operação matemática (nesse
exemplo a soma) e, para tal, utilizar laranjas e afirmar que esta atividade envolve
a Educação do Campo. Mas essa atividade poderia ser feita com carros, casas,
celulares, ou algo que se situa em qualquer lugar. Mais do que isso, uma atividade
de matemática de uma escola do campo deve preparar os alunos para a vida deles
no campo ou fora dele, “pois a escola do campo deve ser considerada como espaço
de vida digna, e, sobretudo, de produção de conhecimento para transformação da
realidade” (NAHIRNE; STRIEDER, 2017, p. 5).
Conforme exposto anteriormente, a escola do campo possui suas
especificidades que nem sempre são compreendidas e respeitadas. Quais as
particularidades da escola do campo? Os professores de matemática relacionam a
Educação do Campo com os conteúdos escolares?
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Dessa forma, na presente pesquisa objetivou-se identificar indícios da
presença do campo (vivência dos estudantes, costumes da comunidade, espaço
escolar, organização política, entre outros) na sala de aula, especialmente no
ensino da matemática nos anos finais do ensino fundamental. Para alcançar esse
objetivo, a investigação se baseou na observação do espaço escolar (pátio, salas,
horta, comunidade em geral), em entrevistas semiestruturadas e análise
documental. O trabalho teve uma versão preliminar apresentada no XIV Encontro
Paranaense de Educação Matemática EPREM (SCHRENK; NOVAES, 2017).
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO
Somente cerca de meio século após o país ter se transformado em República,
é que uma Constituição brasileira, a de 1934, vai tratar da Educação Rural, ainda
não chamada de Educação do Campo (BRASIL, 2014, p. 6).
Em 1937, foi criada a Sociedade Brasileira de Educação Rural, com o intuito de
expandir o ensino e preservar a cultura do homem no campo, merecendo destaque
o elevado número de analfabetos. Após a Segunda Guerra Mundial, foi criada a
Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais na qual a
educação se desenvolvia com o objetivo de proteção e assistência ao camponês, o
qual era tratado como carente, subnutrido, pobre e ignorante (PARANÁ, 2006, p.
17).
A partir da segunda metade do século XX, começam a surgir movimentos
sociais do campo, que passaram a aprender que a luta pela terra era apenas o início
da mobilização, porque ela poderia garantir sustento e produção de vida. Porém,
outras demandas foram se tornando presentes. Dessa forma a educação e a
escolarização dos trabalhadores do campo e seus filhos passaram a integrar a
pauta dos movimentos sociais do campo (BRASIL, 2014, p. 8).
Em consequência da nova constituição aprovada em 1988, outras leis foram
discutidas e decretadas, como por exemplo, a LDB de 20 de dezembro de 1996.
Essas leis levaram ao repensar sobre a educação dos trabalhadores do campo
(BRASIL, 2014, p. 7) desta forma a educação começou a se destacar como um
direito de todos (PARANÁ, 2006, p. 18).
O artigo 28 da LDB reconhece a especificidade do campo:
Art. 28º. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às
peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades
e interesses dos estudantes da zona rural;
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às
fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III - adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996, p. 11).
Mesmo com esses avanços na legislação educacional, a realidade das escolas
para a população rural continuava precária, seja em condições materiais dentro de
sala, na escola como um todo, transportes, materiais didáticos (PARANÁ, 2006, p.
18).
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Em 1997, houve um marco na retomada da luta por uma Educação do Campo
de qualidade, pelo respeito a suas raízes culturais e pelo entendimento de suas
singularidades. Foi realizado o I Encontro de Educadores e Educadoras da Reforma
Agrária (I ENERA), organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) com apoio de outras entidades, no qual foi lançado um desafio: pensar
a educação pública a partir do mundo do campo (PARANÁ, 2006, p. 19; BRASIL,
2014, p. 8).
Sob influência do contexto de mobilização então vivido, num movimento de
base, as escolas do campo espalhadas nos mais diferentes recantos do país
estavam realizando práticas que buscavam associar o processo educativo aos
interesses dos trabalhadores do campo (BRASIL, 2014, p. 8).
Em agosto de 1997, iniciaram-se as discussões preparatórias para a I
Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, que viria a ser
realizado um ano após o ENERA, em julho de 1998 (PARANÁ, 2006, p. 19; BRASIL,
2014, p. 9).
O debate sobre a compreensão de campo trouxe a perspectiva de que campo
é mais do que lugar de plantar ou de criar animais para suprir a alimentação da
humanidade (BRASIL, 2014, p. 11).
A partir de então, o poder público passou a reconhecer a necessidade de
pensar uma legislação específica de educação aos povos do campo. Foram
aprovadas em 2002 no Conselho Nacional de Educação, por meio da Câmara de
Educação Básica, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo (PARANÁ, 2006, p. 19; BRASIL, 2014, p. 12). A partir das discussões sobre
as Diretrizes Operacionais, foi proposta a utilização do termo Educação do Campo:
A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões
inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios
dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência
e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de
projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade
social da vida coletiva no país (BRASIL, 2002, p. 1).
Ainda no plano das ações em parceria entre os diferentes movimentos e
instituições ligadas aos trabalhadores do campo houve, em julho de 2004, a
realização da II Conferência Nacional por uma Educação do Campo, contando com
mais de mil participantes, representando cerca de 40 entidades (BRASIL, 2014, p.
12).
No estado do Paraná, começou a se pensar na educação para homem do
campo a partir de 1990:
Foi criado pelo governo estadual, na gestão 1992-1994, o Programa Especial
Escola Gente da Terra, que tinha como propósito ‘dar um atendimento
específico e diferenciado’ aos povos do campo, das áreas indígenas, dos
assentamentos e aos assalariados rurais, no nível do Ensino Fundamental e
da alfabetização de jovens e adultos (PARANÁ, 2006, p. 20).
Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo (DCEC) (PARANÁ,
2006, p. 21), a partir de 2000, após vários encontros e reuniões, foi criada a
Articulação Paranaense por uma Educação do Campo, que definiu uma pauta de
reivindicações para a semana de lutas pela agricultura. Entre as reivindicações,
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estava a criação de um departamento específico para a Educação do Campo, na
Secretaria do Estado da Educação, atendida em 2002 com a criação da
Coordenação da Educação do Campo na Secretaria do Estado da Educação (SEED).
Desde então, a Educação do Campo passou a ter um espaço de articulação
entre o poder público e a sociedade civil organizada. Foram realizados dois
seminários de Educação do Campo no Estado, em que estiveram presentes os
sujeitos coletivos da Articulação Paranaense por uma Educação do Campo, entre
outros (PARANÁ, 2006, p. 22).
Apesar de parecer ter o mesmo significado, o termo “rural” e “campo
possuem concepções diferentes. Segundo as DCEC (PARANÁ, 2006, p. 24), o termo
campo é pensado como um lugar de vida, de trabalho, de cultura, da produção de
conhecimento na sua relação de existência e sobrevivência, valorizando-os como
sujeitos que possuem laços culturais e valores relacionados à vida na terra. O
termo rural, por sua vez, é pensado a partir de uma lógica economicista,
representa uma perspectiva política presente nos documentos oficiais, que
historicamente fizeram referência aos povos do campo como pessoas que
necessitam de assistência e proteção, na defesa de que o rural é o lugar do atraso.
É importante pensarmos em como deve se dar o ensino na sala de aula para
uma escola do campo. As DCEC (PARANÁ, 2006, p. 44) citam que para que efetive
a valorização da cultura dos povos do campo na escola, é necessário repensar a
organização dos saberes escolares, ou seja, os conteúdos específicos a serem
trabalhados.
No caso específico do Paraná, as DCEC (PARANÁ, 2006, p. 44) apresentam duas
formas de como pode se dar essa reorganização. Uma delas ocorre nas disciplinas
da Base Nacional Comum, onde poderemos observar a articulação dos conteúdos
sistematizados com a realidade do campo. Verificar se “os conteúdos culturais dos
povos do campo estão presentes nas disciplinas, se os saberes dos povos do campo
integram os currículos das disciplinas, são formas de investigar” (PARANÁ, 2006, p.
45) se a Educação do Campo está presente na sala de aula da escola do campo.
Sobre a segunda forma, apresentam que:
[...] ocorre pela criação de disciplinas para compor a parte diversificada da
matriz curricular. [...] Porém, é importante salientar que a implementação da
Educação do Campo não vai ocorrer apenas com a criação de várias disciplinas
na parte diversificada, [...] é fundamental garantir que a realidade do campo,
com sua diversidade, esteja presente em toda a organização curricular
(PARANÁ, 2006, p. 45).
Na próxima sessão iremos apresentar os aspectos metodológicos da pesquisa,
bem como as categorias que emergiram da leitura atenta das fontes de pesquisa.
ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
A pesquisa de caráter qualitativo tem como principal característica buscar dar
sentido ou interpretar os fenômenos de acordo com os significados que as pessoas
trazem para eles (DENZIN, LINCOLN, 2006).
Para Duarte (2004) o que o caráter qualitativo não é necessariamente o
recurso de que se faz uso, mas o referencial teórico/metodológico eleito para a
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construção do objeto de pesquisa e para a análise do material coletado no trabalho
de campo.
A modalidade de pesquisa utilizada neste trabalho
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foi o estudo de caso cujo
objeto é uma unidade que se analisa profundamente (TRIVINÕS, 1987). Esse
estudo pode ser simples e específico, como o de uma professora competente de
uma escola pública, ou complexo e abstrato, como o das classes de alfabetização
ou do ensino noturno (LÜDKE; ANDRÉ, 2005).
A pesquisa foi desenvolvida a Colégio Estadual do Campo Teotônio Vilella
3
situado na zona rural do município de Missal.
Concomitantemente às observações, realizamos entrevistas semiestruturadas
com o diretor do colégio (Entrevista A, SCHRENK, 2015), com a pedagoga
(Entrevista B, SCHRENK, 2015) e com a professora de matemática do Ensino
Fundamental, séries finais (Entrevista C, SCHRENK, 2015). Como critério de
inclusão, os entrevistados deveriam estar trabalhando mais de quatro anos na
escola. Foram excluídos da entrevista os professores que estiveram afastados por
mais de seis meses de suas funções no ano da realização da pesquisa. Elaboramos
um roteiro para a entrevista conforme os objetivos da investigação. Segundo
Duarte (2004), entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear
práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios específicos, mais ou menos
bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente
explicitados.
Os principais documentos analisados foram as Diretrizes Curriculares da
Educação do Campo do Estado do Paraná (2006), os documentos do colégio (PPP,
Plano de Trabalho Docente (PTD) da disciplina de Matemática) e materiais dos
estudantes (cadernos de matemática do ano anterior ao estudo). Para fazer a
análise dos cadernos utilizamos os trabalhos de Gvirtz (2009), que discorrem sobre
a relação entre o currículo prescrito e o currículo ensinado por meio da análise dos
cadernos dos estudantes. Para Gvirtz (2009, p.25):
O caderno é um espaço de interação entre professor e aluno, uma arena na
qual se enfrentam cotidianamente os atores do processo de ensino-
aprendizagem e onde, portanto, é possível vislumbrar os efeitos desta
atividade: a tarefa escolar. A favor da eleição deste objeto se encontra o fato
de todos os dias, em quase todas as horas de aula, alunos e professores levam
a cabo um minucioso processo de escrituração cujos âmbitos de registro não
podem desconsiderar o caderno e a lousa. Assim, o caderno constitui um
campo significativo para observar os processos históricos e pedagógicos da
denominada “vida cotidiana da escola”, nem tanto no que tende as relações
de poder interpessoal mas, e sobretudo, no que concerne a produção de
saberes.
Além disso, segundo Gvirtz e Larrondo (2008, p.39) “tal documento [cadernos
escolares] não é considerado em si mesmo, mas tomando como fonte primária
neutra para a aproximação de outras questões, permitindo observar que
conteúdos se ensinam e como se ensinam” o que justifica o cotejamento com as
demais fontes.
Partindo da caracterização de cadernos escolares proposta por Gvirtz (2009),
analisamos cadernos dos estudantes regularmente matriculados no ano de 2014
4
,
sendo um do ano, um do ano, um do ano e um do ano do Ensino
Fundamental. Excluímos os cadernos dos estudantes que reprovaram por nota
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e/ou frequência no ano de 2014. Desta forma, este instrumento é fonte
privilegiada para confrontar com as entrevistas e os documentos escolares e
compreender se e como ocorre a Educação do Campo na escola investigada.
A análise foi feita de modo a contemplar algumas categorias pré-estabelecidas
conforme explicitadas nas DCEC (2006) de tal forma que deem sentido à questão
de pesquisa proposta, mas procurando dar “espaço para a emergência do novo”
(DUARTE, 2004) com o objetivo de não excluir um dado relevante que não estava
previsto no projeto.
Partindo desse entendimento, a seguir serão apresentados aspectos da
cultura escolar da escola do campo e as categorias estabelecidas a partir dela para
análise dos dados.
CULTURA ESCOLAR DO CAMPO
De acordo com Julia (2001), a cultura escolar é concebida:
[...] como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e
condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão
desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e
práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas
(finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo
profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e,
portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua
aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores (JULIA,
2001, p.10).
Vidal (2005, p.19), porém, compreende a cultura escolar “como constituída
pela apropriação criativa de modelos, baseada na relação entre determinantes
sociais e históricas e as urgências próprias da organização e do funcionamento
escolares”.
Desta forma, os determinantes sociais e históricos definem normas, práticas e
finalidades que fazem com que exista uma cultura escolar do campo.
Para os estudantes que vivem no campo, é importante que lhes seja permitido
apresentar seus conhecimentos prévios
5
na sala de aula criando “condições para
que o estudante desinteressado se torne motivado e proporcionando um
ambiente que sustente e otimize a motivação dos aprendizes perante as atividades
escolares para que eles as valorizem e desejem nelas se engajar” (CAVENAGHI;
BZUNECK, 2009, p. 10) para que ele se sinta à vontade e seguro em uma aula de
matemática e possa mostrar para todos o conhecimento que ele traz consigo e
como consequência, ter o melhor ensino/aprendizado da matemática possível. Os
professores deveriam ter conhecimento sobre a importância de trabalhar a vida
do campo e a vida que o estudante presencia dentro da sala de aula.
Valorizar um saber local do campo não significa negligenciar um saber
matemático de referência, pois um não exclui o outro. Em entrevista a Barbosa
(2014), Gelsa Knijnik fala com maestria sobre os saberes locais e os saberes
hegemônicos:
É óbvio que eles têm direito de ter acesso aos saberes hegemônicos, só que
o preço a ser pago não é o apagamento dos seus saberes, das suas histórias
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de vida, então essa é a questão. [...] Quem vai discordar que quaisquer
trabalhadores têm o direito a se apropriar dessa linguagem, dessa
racionalidade da matemática, que permite que eles passem em provas, que
passem em concursos, isso e aquilo, ou o que seja matemática, então isso é
óbvio. O problema é que eles [os que estão alinhados com as posições da
Pedagogia Crítica dos Conteúdos] não se interessam pela forma de vida
dessas pessoas, eles estão dizendo que isso não interessa, não interessa
ensinar isso. O que eu estou dizendo é que estamos de acordo com a primeira
parte, mas o preço a ser pago não é esquecer [as práticas matemáticas locais].
Portanto não é uma matemática específica para os do campo, porque, na
verdade, eu vou dizer que os da cidade também têm que conhecer essa
matemática do campo (BARBOSA, 2014, p. 181)
Após o entendimento do conceito de cultura escolar, dos saberes locais e feita
a leitura e releitura dos documentos oficiais da escola, das DCEC (2006) das
entrevistas transcritas e dos cadernos dos estudantes, emergiram as categorias de
análise sobre a cultura escolar da escola do campo para esta pesquisa, destacadas
no Quadro 1.
Quadro 1 - Categorias de análise de dados da cultura escolar da escola do campo
Categorias
- Espaço Escolar;
- Organização Política, Movimentos Sociais e Cidadania;
- Comunidade;
- Concepção dos professores sobre a Educação do Campo.
Fonte: autoria própria (2015).
ESPAÇO ESCOLAR
A escola do campo geralmente possui um espaço escolar que a caracteriza.
Segundo as DCEC (2006), os povos do campo querem que a escola seja o local que
possibilite a ampliação dos conhecimentos do campo, como a horta escolar,
alimentação saudável, remédios caseiros, plantios, para além dos conhecimentos
próprios da escola. Segundo o diretor da escola, a horta escolar é um bom exemplo
disso, onde os estudantes do colégio ajudam na plantação e cultivo das plantações
de diversas hortaliças, além de mandioca e outros alimentos. O cultivo da horta
(Figura 1) faz parte do programa Mais Educação
6
, que é um projeto trabalhado
dentro do governo estadual a partir de 2014, específico para a questão do campo.
Figura 1 Horta onde os estudantes auxiliam no cultivo de plantas e verduras
Fonte: autoria própria (2015).
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Outro enfoque do programa é o chamado artesanato regional, coordenado
por uma professora do colégio que também é moradora da comunidade. Sobre o
artesanato a professora de matemática nos diz que
Tudo aquilo que faz parte da memória, que os nossos avós, nossas famílias
faziam de objetos, de utensílios dentro de casa para uso da família vai
também para a oficina e para o trabalho de artesanato onde eles produzem
os panos de prato, crochês, tricôs, roupas e uma série de outras atividades
que são feitas com a visão da Educação do Campo (ENTREVISTA C, SCHRENK,
2015).
Segundo a professora de matemática e a pedagoga, os materiais criados nas
aulas de matemática e nas outras disciplinas geralmente são confeccionados em
sala e, em seguida, expostos no saguão para as demais turmas.
As DCEC (2006) destacam a importância das atividades que são realizadas fora
da sala de aula, citando o campo, os rios, o acampamento, dentre outras
atividades, que não podem passar despercebidas e o que pode acontecer por
causa do contato diário dos estudantes com esses lugares. Pensando nessas
atividades, a escola realiza intercâmbios com outros colégios também na
modalidade de Educação do Campo. Segundo os entrevistados, todo ano é
comemorado o dia do estudante com outro colégio do campo. No período da
manhã é trabalhada a questão cultural, onde os estudantes fazem apresentações,
conhecem o colégio, visitam os locais próximos e no período da tarde são
realizadas atividades esportivas.
Os trabalhos sobre Educação do Campo são valorizados pelos agentes
escolares, sendo uma das estratégias utilizadas a fixação de cartazes pelo colégio.
Segundo as DCEC (2006), o colégio situado no campo possui como uma
característica o calendário escolar seguindo as temporadas de plantio e colheita,
evitando assim a ausência dos estudantes na escola. Verificamos no PPP do colégio
que o mesmo segue o calendário oficial (Governo do Estado), porém, quando
épocas de intenso trabalho na agricultura, o diretor informa que são feitos ajustes
quanto a provas, trabalhos, atividades, mas sem alterar o calendário anual.
O espaço escolar não se limita à sala de aula, é muito mais rico. As aulas
acontecem em sintonia com o meio ambiente, com os modos de vida do estudante
e este se torna importante para o espaço escolar, o espaço feito para ele e para
sua formação.
ORGANIZAÇÃO POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E CIDADANIA
Quando se fala em Educação do Campo, pensa-se em formar um cidadão que
atuará no campo ou na cidade. Para isso o colégio deve possuir uma estrutura que
mostre para o estudante sua importância para o meio em que vive. É importante
que a escola possua uma gestão alinhada com seus objetivos, que pode ser mais
democrática ou mais autoritária.
Quando perguntado sobre a organização política do colégio, os entrevistados
falaram que as decisões são sempre feitas em grupo. O diretor cita o plano
disciplinar, construído com os professores e discutido em assembleia com
estudantes e pais, que em seguida é aprovado e colocado em vigor. Todo ano o
plano disciplinar é revisto e atualizado. O PPP (2015) apresenta que
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A gestão da escola é traduzida como um ato político, porque implica sempre
uma tomada de posição dos atores sociais. Assim sendo, sua construção não
pode ser individual, mas coletiva, envolvendo os diversos atores na discussão
e na tomada de decisões (PARANÁ, 2015, p. 34).
A fim de promover a organização dentro de sala de aula e preparar os
estudantes para a sociedade, a sala de aula foi planejada (Figura 2), segundo o
diretor, como um grupo de trabalho, onde a turma é dividida em equipes de quatro
estudantes, onde um deles é o coordenador. Cada turma possui dois líderes, um
menino e uma menina e dois professores, eleitos pela classe escolar. Os grupos e
o coordenador mudam a cada trimestre. Na visão do diretor, isso contribui para a
formação de lideranças, para se trabalhar no coletivo, um diferencial na formação
desse estudante na luta por seus direitos de cidadão.
Figura 2 Sala de aula dividida em grupos para as aulas
Fonte: coordenação do colégio (2015).
A participação dos estudantes é muito importante, porque é por eles e para
eles que o colégio existe. Para o diretor é muito gratificante ver os estudantes
saírem do colégio e ingressarem em grandes universidades, além de vários
estudantes que vão para o colégio agrícola:
Todos os anos temos enviado três/quatro estudantes para o colégio agrícola
em Foz (neste ano foram quatro), de onde tem saído grandes técnicos
agrícolas. Um plano futuro é a criação de um pós-médio em agricultura
familiar, tendo um espaço próprio para plantios, criação de animais, a fim de
que no futuro o estudante aplique o conhecimento dele na comunidade e se
torne um cidadão presente nela (ENTREVISTA A, SCHRENK, 2015).
Para os entrevistados, ver os estudantes saírem da sala de aula e permanecer
no campo é um fato que motiva cada vez mais a lutar pelo campo. Porém, é
perceptível uma dificuldade quanto ao apoio do governo na identificação como um
colégio do campo. O diretor diz que muitas vezes são vistos como um colégio
qualquer, não como um colégio do campo, mas a busca pelo reconhecimento
nunca acaba.
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COMUNIDADE
O apoio da comunidade na qual o colégio está inserido é um aspecto bastante
presente. Segundo as DCEC (2006), a participação dos pais e familiares e da
comunidade em geral é fundamental para o funcionamento do colégio. É
indispensável que o estudante perceba que ele é importante para a comunidade
onde ele está inserido. O PPP (2015) do colégio tem por filosofia de trabalho
educacional a formação do cidadão consciente, crítico e autônomo, envolvido com
o próprio desenvolvimento e com o da comunidade. Ele enfatiza que a presença
da família no espaço escolar pode ser entendida como um fator extremamente
importante para o sucesso da aprendizagem do estudante.
Para que o estudante perceba sua importância para este local, ele deve
conhecê-lo e, segundo o diretor, esse é um dos enfoques do programa “Mais
Educação”, a memória, a história da comunidade, onde se tem um professor
morador da comunidade que, juntamente com os estudantes, fazem um estudo
da comunidade, dos pioneiros, dos professores, entre outros, para que conheçam
essa história, se sintam membros integrantes e participantes de todo esse
processo. Para ilustrar essa preocupação, trazemos um recorte de jornal sobre o
Resgate da Memória nas Escolas do Portão do Ocoy publicado no Jornal
Mensageiro de Medianeira no ano de 2014, que mostra a preocupação do colégio
em apresentar para os estudantes a história da escola onde estudam e o quanto
ela foi importante para a formação da comunidade e das pessoas que ali moram.
Outro fator que exemplifica a forte relação do colégio com a comunidade é a
festa junina. Juntamente com a festa junina é realizado o concurso da
macarronada, onde, segundo a professora, é muito grande o empenho por parte
de todos para o sucesso desse evento. Vários pais e outros membros da
comunidade se disponibilizam para fazer porções de macarrão. O diretor diz que
cada turma tem a responsabilidade de fazer uma porção de macarrão, e os
professores também se dividem em grupo para participar. Além disso, as
apresentações das turmas são feitas no dia da festa para toda a comunidade. O
colégio e a comunidade em geral veem a festa como uma confraternização que
aproxima as pessoas, que renova o comprometimento da sociedade com a escola,
além de fazer com que o estudante se sinta importante para o colégio e para a
comunidade onde vive.
CONCEPÇÃO DOS PROFESSORES SOBRE A EDUCAÇÃO DO CAMPO
Como percebemos, para que a Educação do Campo ocorra, é necessário que
a escola possua professores habilitados, funcionários conhecedores da linguagem
do estabelecimento de ensino no qual estão inseridos. No colégio em questão,
vemos a presença desses quesitos nas entrevistas, quando o diretor nos diz que
grande parte dos professores e outros funcionários são filhos de agricultores e/ou
residem na comunidade. O colégio também promove seminários e cursos sobre a
Educação do Campo e como aplicar esses conhecimentos à realidade do colégio.
As DCEC (2006) ressaltam sobre a importância dos documentos possuírem
informações que levem à ocorrência da Educação do Campo. Segundo o diretor,
são realizados vários encontros pedagógicos onde os professores estudam as
diretrizes da Educação do Campo, reelaboram suas propostas de trabalho e
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contribuem para a reestruturação do PPP do colégio, buscando a caracterização da
linguagem, da característica do campo no colégio e no estudante, fazendo-o
estudante se identificar com o local em que vive.
É muito importante que os professores tenham conhecimento sobre a
Educação do Campo e, como afirmam Antunes-Rocha e Martins (2009), a sua
formação e especialização deve ser contínua. As DCEC (2006) destacam a
importância da pesquisa constante, encontrando alternativas metodológicas que
levem a realidade vivida pelos estudantes para a sala de aula, pois, não que seja
impossível ensinar, mas a dificuldade do professor com pouco conhecimento e
convivência com a Educação do Campo tende a ser maior do que o professor que
vive no campo e que o conhece e luta por ele.
RELAÇÕES ENTRE A CULTURA ESCOLAR DO CAMPO E O ENSINO DA
MATEMÁTICA
Os entrevistados informaram que ainda não existe uma disciplina específica
para Educação do Campo e que as atividades relacionadas à disciplina nessa área
são realizadas nas disciplinas específicas e no programa Mais Educação, sempre
em contraturno. De acordo com o diretor, “é possível perceber o professor de
matemática trabalhando área, perímetro, usando o espaço escolar e o espaço da
comunidade, buscando o que o estudante já conhece(ENTREVISTA A, SCHRENK,
2015). A professora de matemática comentou sobre algumas atividades realizadas:
“O trabalho com a horta no cálculo de área e perímetro, cálculo da altura da árvore
com base na sombra” (ENTREVISTA C, SCHRENK, 2015). Estas atividades
evidenciam a presença da Educação do Campo nas aulas de matemática.
Por outro lado, verificando os cadernos (Figura 3) percebemos que poucas
atividades referenciam o campo ou algum desdobramento do que ocorre no
projeto Mais Educação. A primeira imagem ilustra o cálculo da árvore com base na
sua sombra.
Figura 3 Atividade no caderno de um estudante do 9º Ano
Fonte: caderno dos estudantes do ano anterior (2014).
Outra atividade que mostra relações com o campo apresenta o cálculo da área
de determinada figura. Poderia ser feita utilizando qualquer figura, mas para esse
cálculo a professora propôs utilizar uma folha de árvore (Figura 4). Foram
analisados os cadernos do sexto, sétimo, oitavo e nonos anos do Ensino
Fundamental do ano anterior à pesquisa e o que encontramos revela poucos
elementos da Educação do Campo nos cadernos de matemática.
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Figura 4 Atividade no caderno de um estudante do 8º Ano
Fonte: caderno dos estudantes do ano anterior (2014).
A análise feita com os cadernos escolares foi crucial para entender o cotidiano
escolar e um instrumento precioso para fazer o contraponto às entrevistas com a
professora, o diretor e a pedagoga da escola.
Além dos cadernos, verificamos que alguns materiais criados pelos estudantes
abarcavam duas ou mais disciplinas em um mesmo tema. O diretor afirmou que
vários trabalhos foram produzidos pelos estudantes, por exemplo, construção de
maquetes da vila da comunidade, que envolveu aulas de artes, geografia e
matemática e português. Para ele, na construção dessas maquetes foi possível
verificar a colaboração da matemática, evidenciada no trabalho com a Geometria;
da geografia, quando se trabalhou a localização da comunidade; e do Português,
ao se abordar a nomenclatura das ruas.
A Figura 5 mostra um exemplo de como foi trabalhada a importância do cultivo
da mata ciliar por meio do que os estudantes já conhecem no campo.
Figura 5 Estudantes percebem na prática a importância da mata ciliar
Fonte: coordenação do colégio (2015).
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A professora de matemática mencionou que o PTD (Plano de trabalho
Docente) da disciplina de matemática segue o mesmo padrão das outras escolas,
mas ela utilizou vários recursos além do livro didático, sempre buscando envolver
a vivência dos estudantes.
O PPP (2015) apresentou a importância dos conteúdos das disciplinas
escolares serem articulados com a realidade do campo valorizando o
conhecimento trazido pelo educando, buscando somar a esse conhecimento os
conteúdos escolares necessários. Ainda segundo o documento, a educação no
campo deve ser pensada e desenvolvida para os sujeitos do campo, de forma a
valorizar sua cultura e seus costumes. Para o diretor, é preciso usufruir do campo
para auxiliar no aprendizado dos estudantes, trabalhando os conteúdos de modo
que seja contemplada a realidade do estudante. Para entender que eles precisam
do conhecimento matemático para dar conta de resolver os problemas que
surgirão.
O trabalho com a horta, a construção de maquetes, cálculo de altura de
árvores e outras partes do colégio são utilizadas, segundo os entrevistados, como
estratégias de ensino que além de envolverem várias disciplinas em um mesmo
tema, fizeram com que o estudante aprendesse tendo por base algo que ele
conhecia. O caráter prático das atividades pode fazer toda a diferença no
aprendizado dos estudantes.
A professora de matemática evidenciou que apesar das atividades não
estarem descritas no PTD, estas já constavam do planejamento de suas atividades
no decorrer do ano, pois como ela lecionava no colégio mais de 10 anos, o
conhecia bem, assim como a vivência dos estudantes, o que lhe permitia perceber
a importância do campo no ensino da matemática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise das fontes e das entrevistas percebemos que uma forte
cultura escolar do campo explicitada no espaço escolar: horta, confecção de peças
de artesanato, visita a outros colégios do campo, projetos sobre a história da
escola, festa junina e grande envolvimento com a comunidade.
O projeto Mais Educação é um exemplo do resgate das raízes do campo
naquela região para auxiliar no ensino dentro da escola e na vida dos estudantes.
Percebemos nos trabalhos em grupo particularidades sobre a Educação do Campo,
as quais foram possíveis de ver por meio das exposições realizadas pelos
estudantes, nas participações em aulas práticas realizadas no colégio e fora dele,
ou seja, na colaboração de cada um para o aprendizado de todos.
Na escola investigada a comunidade participa sempre das reuniões e decisões.
Os eventos realizados pelo colégio contam sempre com uma grande colaboração
por parte de toda a comunidade. Como grande parte dos professores pertencem
à comunidade, estes sempre a mostram para quem vem visitá-la, a fim de que a
respeitem como ela merece.
Com base nos documentos oficiais e na análise dos dados coletados, temos
elementos suficientes para afirmar que a cultura escolar do campo está presente
no colégio investigado, ou seja, identificou-se uma cultura escolar específica do
campo. Os professores entrevistados demonstraram que possuem conhecimento
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da legislação vigente e que, respeitando as especificidades da escola, procuram
pensá-la, na maioria das vezes, de acordo com o que está prescrito.
Os cadernos de matemática pouco mostram sobre a Educação do Campo,
apesar da professora de matemática afirmar que busca fazer relações. O que fica
mais evidente é na organização da escola e em atividades interdisciplinares (por
exemplo a produção de maquetes).
Percebe-se, desta forma, que as aulas de matemática seguem, em grande
medida, o padrão do planejamento e execução das outras escolas, com pouca
especificidade da Educação do Campo.
Vale ressaltar que nos apropriamos de ferramentas da história cultural para
contar esta história do presente e que os cadernos foram peças fundamentais para
entender mais do cotidiano das aulas de matemática fazer o contraponto com as
entrevistas e fontes oficiais da escola.
O currículo mostrou-se bastante urbanocêntrico, especificamente em relação
as aulas de matemática, apesar de uma forte cultura escolar do campo estar
presente na escola investigada.
Ao finalizar este trabalho nos perguntamos se em nossas escolas urbanas não
estamos precisando, e muito, de características que estão na essência das escolas
do campo: sentimento de pertencimento, envolvimento da comunidade, formação
de lideranças, interdisciplinaridade, trabalho em grupo e valorização das práticas
matemáticas locais.
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The countryside school culture and the
teaching of mathematics
ABSTRACT
With the objective of identifying the presence of the countryside school culture in the
teaching of mathematics (final years of elementary school) in a school located in the rural
area. The present research was based on the theoretical-methodological contribution of
Cultural History through the concept of school culture (JULIA, 1990), having as sources:
Elementary School (final years) students workbooks; teaching activities images; Political
Pedagogical Project (PPP); math teacher planning; pertinent legislation; interviews with the
school director, the mathematics teacher of the Elementary School, and the pedagogue.
The curriculum was strongly urban-centered specifically in relation to mathematics classes,
and although a strong school culture of the field is present in the school investigated, there
is little presence of this field school culture specifically in the teaching of mathematics. As a
final reflection, we ask ourselves if in our urban schools we do not need cultural elements
school of the field: sense of belonging, community involvement, leadership formation,
interdisciplinarity, team work and valorization of local mathematical practices.
KEYWORDS: Countryside Education. Mathematical Education. School Culture.
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NOTAS
1- Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo (2006, p.9), “a Educação do Campo é
uma política pública pensada, mediante a ação conjunta de governo e sociedade civil organizada.
Caracterizada como o resgate de uma dívida histórica do Estado aos sujeitos do campo, que tiveram
negado o direito a uma educação de qualidade, uma vez que os modelos pedagógicos ora
marginalizavam os sujeitos do campo, ora vinculavam-se ao mundo urbano, ignorando a diversidade
sociocultural do povo brasileiro, especialmente aquela expressa na prática social dos diversos
sujeitos do campo”.
2- O presente estudo, por envolver seres humanos foi submetido ao Comitê de Ética com o número
do protocolo: 48885615.4.0000.5547 (aprovado em 17 set 2015).
3- Situado no Distrito Portão do Ocoí, Município de Missal, Estado do Paraná. As atividades de ensino
deste estabelecimento iniciaram com as séries iniciais do Ensino Fundamental, mantida pela
Prefeitura Municipal, em 1965 e recebia o nome de Escola Olavo Bilac. Em 1974 foi fundada como
Grupo Escolar Municipal Olavo Bilac. Em 1982, a escola, foi autorizada a funcionar com as quatro
séries finais do 1º Grau sendo implantado gradativamente as demais, e em 1986 o curso de 1º Grau
foi reconhecido pela Resolução 1702/86 publicado no Diário Oficial de 14 de abril de 1.986,
recebendo então a denominação Escola Municipal Olavo Bilac Ensino de Grau. A partir do
Reconhecimento do curso de grau, foram municipalizadas as séries iniciais do Ensino
Fundamental. Estas passaram a ser mantidas pela prefeitura, denominando-se assim Escola
Municipal Olavo Bilac Educação Infantil e Ensino Fundamental. E as séries finais do Ensino
Fundamental passaram a ser mantidas pelo Governo do Estado do Paraná denominando-se Escola
Estadual Teotônio Vilella Ensino Fundamental.
4- Foram utilizados os cadernos do ano anterior a pesquisa para que o professor não fosse
influenciado a fazer mais atividades relacionadas ao campo somente porque estava sendo realizada
a pesquisa.
5- Conhecimento prévio é apresentado neste trabalho como o conhecimento que o estudante
adquiriu fora da sala de aula, nesse caso, na sua vivência no campo.
6 - O Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado
pelo Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para induzir a
ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva da Educação Integral. Neste
programa os estudantes e professores realizam atividades extracurriculares, seja no trabalho com a
horta, artesanato, entre outros, com o objetivo de ampliar a jornada escolar, contribuindo para a
diversidade e riqueza de vivências.
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Recebido: 22 fev. 2018
Aprovado: 23 jul. 2018
DOI: 10.3895/actio.v3n3.7883
Como citar:
SCHRENK, M. J.; NOVAES, B. W. D. Relações entre a cultura escolar do campo e o ensino da matemática.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 451-470, set./dez. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/actio>.
Acesso em: XXX
Correspondência:
Maykon Jhonatan Schrenk
Esquina Eucalipto, s/n, Portão do Ocoí (zona rural), Missal, Paraná, Brasil.
Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
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