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http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
Um levantamento histórico das pesquisas
sobre linguagem no ensino de ciências no
Brasil
RESUMO
Tabatta Cristina Fritzen da Silva
Lavarda
tabattacristina@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-3879-1843
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil
Patrícia Barbosa Pereira
patriciapereira@ufpr.br
http://orcid.org/0000-0002-2984-2872
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil
O presente artigo apresentará um breve levantamento histórico sobre as pesquisas em
Linguagem no Ensino de Ciências no Brasil. Em busca da identificação das necessidades e
do ponto de partida dessas pesquisas, recorreu-se a uma importante pesquisadora, com o
intuito de compreender a constituição da linha temática de Linguagem no Ensino de
Ciências, suas principais tendências e características, seus mais relevantes teóricos, suas
metodologias de pesquisa e de análise, bem como seus rumos futuros. Para tanto, foi
realizada uma entrevista semiestruturada com uma doutora, professora e pesquisadora da
Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Utilizando como suporte teórico-
metodológico a Análise de Discurso de linha francesa, procurou-se compreender alguns
aspectos do discurso da pesquisadora sobre fatores relevantes para a constituição da linha
de pesquisa de Linguagem no Ensino de Ciências.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Pesquisa. Ensino de Ciências.
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INTRODUÇÃO
A área de Ensino de Ciências no Brasil é bastante nova, quando comparada
a outras áreas de produção de pesquisas. Sua emergência se caracteriza por um
movimento de busca pela melhoria do ensino das ciências exatas, também
conhecidas como ciências duras, nas universidades e nas escolas, a partir da
necessidade de se repensar o ensino tradicional. Segundo pesquisas de Nardi
(2005), diversos foram os fatores considerados favoráveis à constituição dessa
área a partir de 1970, entre eles: a criação do Instituto Brasileiro de Educação e
Cultura, a área 46 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), os Centros de Ciências, o início dos cursos de pós-graduação em
Ensino de Ciências, além de movimentos para melhorias no ensino, que
culminaram com a criação de uma disciplina chamada Instrumentação para o
Ensino de Física” que hoje temos em todos os cursos de graduação em
Licenciatura (cada uma intitulada conforme o curso).
Outros fatores importantes e determinantes foram a criação de eventos
para a interação entre pesquisadores e divulgação de seus trabalhos, além das
reestruturações curriculares ocorridas na Educação Básica, de extrema
importância para o início das preocupações com o Ensino de Ciências, uma vez que
essas produziram mudanças de alcance amplo, como a presença mais forte das
disciplinas de Ciências, Física, Química e Biologia no currículo, aumentando assim
suas cargas horárias e, consequentemente, o número de professores necessários
para ministrá-las. Tudo isso fomentou a preocupação de órgãos públicos e,
especialmente, das universidades, com a preparação de professores e com a
expansão de pesquisas na área.
Um dos eventos mais importantes para a interação entre pesquisadores e a
divulgação das pesquisas no Ensino de Ciências no Brasil é o Encontro Nacional de
Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC), um evento bienal, promovido pela
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC). Esse
evento tem como objetivo reunir e favorecer a interação entre os pesquisadores
das áreas de Ensino de Física, de Biologia, de Química, de Geociências, de
Ambiente, de Saúde e áreas afins, com a finalidade de discutir trabalhos de
pesquisa recentes e tratar de temas de interesse da ABRAPEC.
Em relação à pesquisa sobre Linguagem no Ensino de Ciências, esse evento
pode estimar a importância dessa articulação, quando em 2005 passou a inserir
entre as suas temáticas o eixo “Linguagens, cultura e cognição” (NICOLLI;
OLIVEIRA; CASSIANI, 2011). Nesse eixo temático os pesquisadores podem
submeter trabalhos que discorram sobre as abordagens discursivas na Educação
em Ciências; argumentação na Educação em Ciências; interações discursivas na
Educação em Ciências; além de leitura e escrita na Educação em Ciências.
As pesquisas sobre Linguagem no Ensino de Ciências se intensificaram de
forma significativa a partir dos anos 1990, especialmente após a incorporação, pela
comunidade de pesquisadores em educação, das abordagens teóricas
estabelecidas pelo psicólogo soviético Lev Vygotsky e seus discípulos. Desde então,
muitos foram os pesquisadores brasileiros que se aproximaram dessa linha
investigativa, apresentando como objeto as abordagens e enfoques de interesse
sobre a linguagem e Educação em Ciências dentre alguns deles podemos citar
Mortimer (1996); mozena e Almeida (1998); Oliveira, Nicolli e Cassiani (2014);
Giraldi e Souza (2005).
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A palavra linguagem é bastante polissêmica, ou seja, ela pode produzir
vários e diferentes sentidos, então, dentre os trabalhos apresentados no ENPEC,
na linha temática anteriormente, mencionada podem ser encontrados os que
abordam a capacidade humana para aquisição e utilização de sistemas de
comunicação e aprendizagem, podem haver trabalhos que se baseiam na
linguagem de sinais, na linguagem escrita e até os que se embasam na linguagem
de computadores.
O objetivo deste trabalho é relatar um breve histórico da pesquisa sobre
Linguagem no Ensino de Ciências, compreender a origem dessa temática, perceber
os caminhos percorridos pelos seus pesquisadores, bem como, suas filiações
teóricas e metodológicas, além de propor um olhar para a importância da
linguagem nos processos de ensino-aprendizagem. Como ponto norteador, e na
tentativa de articulação da produção e pesquisas e reflexões sobre as questões da
linguagem na Educação Científica, partiremos de uma entrevista realizada com
uma relevante pesquisadora da área, a professora doutora Suzani Cassiani, da
Universidade Federal de Santa Catarina UFSC.
GRANDES PENSADORES DA LINGUAGEM
Para nos situarmos sobre as origens dos estudos da linguagem,
apresentaremos, a seguir, algumas concepções de linguagem dos principais
filósofos e psicólogos da área. Os estudos da linguagem são relativamente
recentes, tendo como marco inicial a fundação da disciplina Linguística, a partir da
publicação do curso de Linguística Geral, em 1916, cuja autoria é atribuída a
Ferdinand de Saussure (1857-1913) que se iniciou na área ao ministrar aulas de
linguística em 1907, em Genebra, Suíça.
Aiub (2009) retrata que Saussure, em uma tentativa de definir o objeto da
Linguística, propõe a separação língua/fala. Dessa forma, seus estudos não
abordariam a fala e sim a língua. Ele teria feito isso porque acreditava que a língua
é um sistema abstrato de regras e a fala é o uso que se faz dessas regras. Ao fazer
isso, Saussure, separa o que para ele é social, passível de descrição, a língua, do
que é individual, a fala.
Porém, nem todos os importantes leitores de Saussure seguiram esta ideia
dicotômica. Bakhtin (2006) valoriza, juntamente com a fala, a enunciação, e afirma
sua natureza social, não individual. Para ele, a fala está indissoluvelmente ligada às
condições da comunicação que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas
sociais.
Para Vygotsky (1998) a linguagem determina o desenvolvimento do
pensamento. Ou seja, é pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela
experiência sociocultural que a criança se desenvolve. Assim, a linguagem se
constitui então como sendo o principal processo de interiorização das funções
psicológicas superiores.
Foucault (1999) faz uma discussão sobre a linguagem que se coloca em
movimento pelo discurso. O “falar sobre” é que constitui o referente e, por isso,
somos, segundo o autor, seres de linguagem e não seres que possuem linguagem.
Bastante expressivo do círculo de intelectuais que fundou a linha conhecida
como Análise de Discurso na segunda metade do século passado na França,
Pêcheux (1997) defende que a linguagem está materializada na ideologia e essa se
manifesta na linguagem. Ele considera a linguagem como um sistema capaz de
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ambiguidade e define a discursividade como a inserção dos efeitos materiais da
língua na história, incluindo a análise do imaginário na relação dos sujeitos com a
linguagem.
Dentre os autores brasileiros que contribuem com o estudo da Linguagem
no Ensino de Ciências os que traduziram para a língua portuguesa obras dos
pensadores supracitados e se embasaram neles para produzir novos
conhecimentos na área como, por exemplo, a professora de Linguística Eni Orlandi,
que traduziu obras de Michel Pêcheux, bem como os professores Eduardo Fleury
Mortimer e Isabel Martins, que são da área de Ensino de Ciências, traduziram as
obras de Mikhail Bakhtin, e destacam seus interesses nas pesquisas sobre a relação
entre a elaboração de conceitos científicos e o uso da linguagem em sala de aula
de Química e Ciências.
Esses representam as correntes da Análise de Discurso no estudo da linguagem,
que coloca no centro da reflexão o sujeito da linguagem, suas condições de
produção do discurso, sua ideologia, o seu social, as relações de sentido
estabelecidas entre os interlocutores, a argumentação, a intenção e a historicidade
da língua. E tudo isso é levado em conta nas pesquisas sobre o Ensino de Ciências
no Brasil.
A PESQUISA SOBRE LINGUAGEM NO ENSINO DE CIÊNCIAS
A necessidade de pesquisas voltadas para a articulação entre a linguagem e
o Ensino de Ciências emergiu da preocupação dos professores com alunos que
tinham dificuldades de leitura e interpretação de textos e imagens. Essas
dificuldades para aprender conteúdos de Ciências eram, muitas vezes, atribuídas
à falta de aprendizado de outras disciplinas - pensava-se que o ensino da leitura
era apenas obrigação do professor de Língua Portuguesa ou que os alunos o
aprendiam Física por não saberem Matemática. Assim, as pesquisas que estavam
sendo realizadas no âmbito das questões de linguagem se limitavam a procurar
compreender questões relacionadas ao ensino escolar (ALMEIDA, 2014).
Para compreender o início das pesquisas em Linguagem no Ensino de
Ciências recorremos ao pesquisador Mortimer (1996) que relata que a partir de
1990 inicia no Brasil o surgimento de um grande número de pesquisas envolvendo
as ideias dos alunos em relação a conceitos científicos aprendidos na escola, as
concepções alternativas ou concepções prévias dos estudantes. Nesse contexto,
os pesquisadores começaram a criticar a excessiva ênfase ao desenvolvimento das
estruturas lógicas propostas por Piaget, que não dava importância para a rica
variedade de ideias apresentadas pelos estudantes. Isso levou a cada vez mais
pesquisadores focarem seus estudos nas ideias dos alunos e menos nas estruturas
lógicas subjacentes.
O autor destaca que o resultado dessas pesquisas contribuiu para fortalecer
uma visão construtivista do ensino-aprendizagem, porém, após algum tempo
começaram a surgir algumas críticas em relação a esse modelo de ensino, no
sentido de que ele não resulta necessariamente em um modelo construtivista de
aprendizado. O movimento de concepções alternativas entrou então em crise, pois
a comunidade de pesquisadores percebeu que não bastava olhar para o sujeito
isolado, mas era necessário levar em conta o contexto histórico, cultural e social
desse indivíduo.
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A respeito das mudanças ocorridas no âmbito da Educação Científica, em
virtude desse novo olhar lançado ao sujeito que aprende, Cassiani e Flôr (2012)
afirmam que as pesquisas sobre linguagem e discurso no Ensino de Ciências se
intensificaram de forma significativa no Brasil a partir dos anos 1990 e 2000. Em
grande parte, esse aumento ocorreu devido à incorporação dos trabalhos de Lev
S. Vygotsky às pesquisas sobre o Ensino de Ciências e, geralmente, essas pesquisas
são caracterizadas pela busca em se compreender como se dá o aprendizado dos
conceitos científicos através das interações sociais mediadas pela linguagem.
Assim, esse breve panorama denota que as pesquisas sobre linguagem no
Ensino de Ciências iniciaram após as crises e o esgotamento daquelas que tratavam
sobre concepções alternativas, nas quais os pesquisadores da época perceberam
que não havia como olhar para o sujeito isolado sem considerar sua interação com
o mundo.
Nas pesquisas de Souza et al. (2014) sobre a produção acadêmica de teses e
dissertações entre os anos 2000 e 2011, obtidas no banco de teses e dissertações
da CAPES por meio das palavras chave “Ensino de Ciências” e ‘Linguagens" é
notável que o número dessa produção apresenta uma tendência de crescimento,
principalmente a partir de 2009, quando a produção um salto quantitativo
saindo de uma média de aproximadamente cinco trabalhos por ano entre 2000 e
2008 para uma média de 17 entre os anos 2009 e 2011. Sendo a concentração
dessas produções em instituições públicas, em que a região sudeste abarca 71%
da produção.
Os autores ainda mostram que quanto à área disciplinar da produção, pouco
mais da metade dos trabalhos identificam sua pesquisa associada às Ciências
(51%), enquanto o restante se distribui entre Biologia (20%), Física (18%) e Química
(11%) o que aponta, assim, para uma lacuna em trabalhos sobre linguagem na área
de Química e Física, disciplinas que possuem maior grau de complexidade para a
maioria dos estudantes. Ainda se evidencia, nessa investigação, que a grande
concentração de pesquisas sobre linguagem, é realizada no Ensino Fundamental,
com representatividade de 56%, e isso poderia justificar a baixa produção nas
disciplinas de Química e Física, que elas são encontradas apenas no Ensino
Médio.
no trabalho Oliveira, Nicolli e Cassiani (2014), desenvolvido a partir de
pesquisa nos anais do ENPEC, no eixo temático de “Linguagem, cultura e cognição,
com objetivo de entender como os pesquisadores vêm lidando com a relação
linguagem e Ensino de Ciências e delinear algumas características dessas
pesquisas, é perceptível que a grande maioria das pesquisas divulgadas, quanto ao
nível de ensino, são realizadas no Ensino Médio e a área de conhecimento mais
contemplada é Ciências, com 37 trabalhos. No entanto, as áreas de Química com
23 e Física com 27 trabalhos, respectivamente, se configuram com considerável
frequência, talvez pelo fato dessas disciplinas estarem inseridas no Ensino Médio
nível mais investigado. A área de Biologia teve um leve aumento, com 16 trabalhos,
o que talvez possa ser explicado pela maior presença dessa área de conhecimento
associada aos trabalhos da área de Ciências, que tiveram um índice maior nesse
estudo. Em relação à natureza das pesquisas, a predominância é da pesquisa
empírica, envolvendo basicamente questões de sala de aula e a motivação dos
pesquisadores é promover uma problematização do espaço educacional, muito
mais do que questionar teorias consolidadas. As autoras também puderam
apontar que as maiores concentrações de trabalhos estão nas temáticas
“Discurso” e “Interações Discursivas”.
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Quantos às filiações teóricas as autoras observaram que Bakhtin é o
referencial mais adotado para os estudos da Linguagem (32%), seguido por
Vygotsky (19%) e depois Pêcheux (11%) e, ao analisarem as pesquisas com
vertente bakhtiniana, as autoras perceberam que pouco mais da metade estão
apoiados no próprio autor, os demais adotam autores que realizam
desdobramentos dos estudos de Bakhtin, em especial aqueles que investigam a
temática “Discurso”, como Eduardo Mortimer, Jean Paul Bronckard, Philip Scot,
Isabel Martins, dentre outros.
De acordo com as abordagens da palavra “Linguagem” nas pesquisas em
Ensino de Ciências, Oliveira, Nicolli e Cassiani (2014) destacam: 1) a Linguagem e
Relações de Poder, em que as pesquisas enfatizam a posição do aluno ou do
professor perante a atividade de leitura, de escrita ou, ainda, nos diálogos
estabelecidos na aula, questionando essas posições ou pelo menos as
considerando; 2) a Linguagem como produto do pensamento, em que os
pesquisadores tomam a linguagem como algo intrínseco ao sujeito, isto é, ela é a
expressão do pensamento, então, enfatizam a importância de analisar a fala, pois
ela indicaria a metacognição, sendo que os estudos que envolvem argumentação
adotam essa postura; 3) a Linguagem como possibilidade de interações discursivas,
em que as pesquisas prezam pela tomada da palavra, priorizando a interação
professor-aluno investigando estratégias ou aulas que tem como foco o diálogo e
a negociação de significados na sala de aula e, por último, 4) a Linguagem como
ferramenta de aprendizagem, abordagem em que se encontram as pesquisas que
enfocam principalmente a argumentação, ou diferentes estratégias de ensino
como leitura, escrita, experimentação, analogias, metáforas, dentre outras, para
observar sua contribuição para a aprendizagem.
LINGUAGEM E ENSINO DE CIÊNCIAS ALGUNS APORTES METODOLÓGICOS
PARA A COMPREENSÃO DESSA RELAÇÃO
Ao levar em conta seus objetivos, esse artigo foi pensado em uma
perspectiva de pesquisa qualitativa que, segundo Bogdan e Biklen (1994), se
caracteriza pelo investigador ser o instrumento principal da pesquisa e a fonte de
dados ser o ambiente natural - rica em dados descritivos, recolhidos em forma de
palavras ou imagens, e não números. Essa perspectiva de tratamento das
informações possibilita que seja examinado o todo, no qual nada é trivial e tudo
tem potencial para construir uma pista que permita estabelecer compreensões
esclarecedoras do objeto de estudo, as quais se concentram mais no processo que
simplesmente nos resultados ou produtos. Para tal, os investigadores tendem a
analisar seus dados de forma indutiva, na qual as abstrações são construídas a
medida que os dados constituídos vão se agrupando, em que o significado é de
importância vital.
Para a realização de um trabalho de conclusão de disciplina de mestrado da
primeira autora e por seu interesse sobre os estudos da Linguagem no Ensino de
Ciências foi convidada para uma entrevista a professora doutora Suzani Cassiani,
da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, que nos atendeu prontamente.
A fim de se constituir os dados, foi utilizada como instrumento de pesquisa
uma entrevista parcialmente estruturada que, segundo Gil (2010), caracteriza-se
por ser guiada pela relação de pontos de interesse que o entrevistador vai
explorando ao longo de seu curso.
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A entrevistada foi escolhida, por ser pesquisadora na área de Linguagem no
Ensino de Ciências e Análise de Discurso há mais de 10 anos, estar atuando como
professora na graduação, na Licenciatura em Ciências Biológicas, e na pós-
graduação em Educação Científica e Tecnológica, como orientadora de
mestrandos e doutorandos na área de Ensino de Ciências.
As questões da entrevista foram relacionadas ao histórico de pesquisa da
entrevistada dentro do Ensino de Ciências, bem como, sua trajetória acadêmica,
os avanços por ela observados nas pesquisas na área de Ensino de Ciências, as
linhas temáticas as quais se dedica em suas pesquisas, as tendências que ela tem
observado sobre as pesquisas no Ensino de Ciências nos últimos anos, a
constituição da linha temática que se dedica a pesquisar atualmente e a sua
contribuição nesse processo, além dos questionamentos quanto aos autores e
metodologias que utiliza como referenciais teóricos em suas pesquisas e a
contribuição da sua linha temática para o Ensino de Ciências.
A entrevista ocorreu por meio do aplicativo Skype, devido a distância de
residência da entrevistada e da entrevistadora. Contudo, isso não inibiu a livre
expressão de ambas, muito pelo contrário, uma vez que a entrevistada estava
falando sobre seu trabalho nos últimos anos, mostrou-se bastante interessada nas
questões, procurou contribuir da melhor forma com suas respostas e se
manifestou, a todo tempo, grata pelo fato de ter sido escolhida para fazer parte
deste trabalho.
Em relação a obtenção e registro dos dados, tal entrevista foi gravada em
áudio com o consentimento da entrevistada que relatou que não era necessário o
uso do anonimato na transcrição da entrevista para este artigo.
Os dados registrados em áudio foram transcritos e analisados de acordo com
técnicas e procedimentos da Análise de Discurso (AD) de linha francesa, proposta
por Michel Pêcheux, na França, e tem como principal norteadora no Brasil a
professora pesquisadora Eni Orlandi.
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata a língua, não
trata a gramática, embora todas estas coisas lhe interessem. Ela trata o
discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso,
de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: como o estudo do discurso observa o
homem falando. (ORLANDI, 2007, p. 15).
Ainda de acordo com a AD a fala em si não pode ser analisada, pois não
consiste em um discurso, ela precisa estar situada em uma posição que depende
de vários fatores como, por exemplo, o momento histórico, a posição do sujeito, a
ideologia, o dito e o não dito, as histórias de vida e leituras e a sociedade.
Nesse sentido, a partir dessa entrevista, teve início a construção do nosso
corpus de análise. De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2008)
Nas ciências humanas e sociais mais particularmente, corpus designa o
conjunto de dados que servem de base para a descrição e análise de um
fenômeno. Nesse sentido, a questão da constituição do corpus é
determinante para a pesquisa, pois trata-se de, a partir de um conjunto
fechado e parcial, analisar um fenômeno mais vasto que essa amostra.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 137)
Ainda para essas autoras, em AD, assim como em outras Ciências Sociais,
geralmente é o corpus que define de fato o objeto de pesquisa, pois ele não é
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preexistente ao mesmo. “Mais precisamente, é o ponto de vista que constrói um
corpus, que não é um conjunto pronto para ser transcrito” (Ibidem, 2008, p. 138).
Para realizar as análises, segundo a AD, devemos levar em conta as relações
de sentido que o discurso possui, ou seja, as suas condições de produção, a
hierarquização da fala - que consiste nas relações de força. Dessa forma, o local de
onde o sujeito fala é constitutivo do que ele diz e ele poderá se expressar de
diferentes formas para diferentes pessoas. Também o mecanismo de
antecipação, que é a capacidade que o locutor tem de se colocar no lugar de seu
interlocutor e tentar compreender o que ele compreende sobre o que se está
falando, para buscar a melhor maneira de se falar.
Para fins de sistematização dos dados e composição de nosso corpus,
fizemos um recorte dos trechos, na articulação de uma rede de sentidos de maior
significância, em relação ao roteiro pensado antecipadamente. Em nossas análises,
dispostas na subseção a seguir, os trechos serão designados, sequencialmente,
como T1, T2, T3 e etc.
Tendo então uma definição do que é a AD e o que deve ser levado em
consideração para suas análises, como deve proceder o analista de discurso? O
analista precisa construir um dispositivo de análise ou interpretação, que tem
como características colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em
um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é
dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que o sujeito não
diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2007,
p.59).
Segundo Orlandi (2007) a AD não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real
do sentido em sua materialidade linguística e histórica. Procura-se então, analisar
o que é dito no discurso do sujeito, o que é dito em outras situações, em outras
condições e em outras memórias.
Ainda segundo a autora, não se objetiva, nessa forma de análise, a
exaustividade da interpretação em extensão, nem a completude, ou exaustividade
em relação ao objeto empírico, pois ele é inesgotável, uma vez que todo discurso
se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro, dentro de
uma rede discursiva, constituindo os interdiscursos.
SENTIDOS SOBRE A ARTICULAÇÃO ENTRE LINGUAGEM NO ENSINO DE CIÊNCIAS
ANÁLISE DE UMA ENTREVISTA
Serão destacados, a seguir, fragmentos da fala da professora Suzani Cassiani
no que concerne às suas respostas às questões formuladas sobre o seu histórico
de pesquisa dentro do Ensino de Ciências, bem como, sua trajetória acadêmica, os
avanços observados nas pesquisas na área de Ensino de Ciências, as linhas
temáticas nas quais se inserem suas pesquisas, as tendências que tem observado
sobre as pesquisas no Ensino de Ciências nos últimos anos, a constituição da linha
temática que se dedica a pesquisar atualmente e a sua contribuição para esse
processo, os autores e metodologias que utiliza como referenciais teóricos em suas
pesquisas e a contribuição da sua linha temática e suas pesquisas para o Ensino de
Ciências.
Nas análises de alguns trechos da entrevista optou-se por compreender as
condições de produção da fala da entrevistada e a posição de onde fala. Isso posto,
buscamos, no início da entrevista, conhecer a trajetória acadêmica da professora
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entrevistada, bem como constatar em que estágio se encontrava a área Ensino de
Ciências na época de sua formação.
Na época que eu me formei, a gente não tinha essa linha de pesquisa em
Educação em Ciências consolidada [...] eu fiz na PUC uma faculdade de
licenciatura em Ciências Biológicas [...] aí quando eu me formei eu comecei a
dar aula [...] e eu me encantei tanto pelo processo de dar aula [...] eu me
envolvi tanto que em 88 eu fui fazer um curso de especialização na Unicamp
em Ensino de Ciências [...] era só especialização, não tinha pós-graduação em
Ensino de Ciências. [...] Na Faculdade Educação nós tínhamos então os
primeiros professores que eram das áreas de Física, Química e Biologia com
doutorado, que poderiam orientar o mestrado, mas eram poucos, então eles
resolveram organizar o curso de especialização já que eles não podiam ainda
atuar no mestrado que era o Ivan Facalanza, a Mariley Simões Gouveia, O
Décio Pacheco, tinha doutorado o Hilário Fracalanza, tinha doutorado a
Maria José Almeida, que foi minha orientadora depois [...] então foi um curso
que mudou minha vida (T1, grifos nossos).
Ainda em uma perspectiva de análise de consolidação das pesquisas em
linguagem na área de Ensino de Ciências e a importância dos cursos de pós
graduação strictu sensu nesse processo, buscamos também compreender as
implicações em relação a realização de seu mestrado e doutorado, em que a maior
dificuldade, conforme sua fala, apontava para falta de programas de s-
graduação no Brasil naquela época, pois, não havia mestrados ou doutorados em
Ensino de Ciências, havia apenas em Educação - e era muito concorrido.
No mestrado que eu entrei em 91 lá na Unicamp, também na faculdade de
Educação, havia uma concorrência gigantesca [...] o meu projeto, foi sobre o
EJA [onde a entrevistada havia começado a trabalhar] [...} E qual não foi
minha surpresa quando eu vi os materiais que a gente ia trabalhar [...] vi que
os materiais que ainda eram feitos na época da ditadura, que na verdade, eles
culpabilizavam as pessoas, ah... por exemplo, os mais pobres, por viverem em
casa de pau a pique no caso do barbeiro, ? Então... não era a condição que
levava a pessoa a ficar doente, era o fato dela, parece que era uma escolha
dela, ela morar em uma casa de pau a pique. Aí eu fiz uma análise até desses
materiais [...] o mestrado, ele me fez entender a importância do
funcionamento da linguagem. Porque eu percebia, como os alunos liam
muito os livrinhos e traziam muitas dúvidas sobre... de interpretação... eu
comecei a perceber como era importante a questão não somente o
conteúdo, mas também a forma como... como que isso se configurava,
então foi que eu comecei no doutorado o meu o meu foco então foi a
leitura, de pensar a questão da Leitura e Escrita no Ensino de Ciências, que
era uma coisa bem nova que tinha visto alguns artigos fora, e também
uma aproximação com o grupo da Eni Orlandi que é da análise do discurso
na Unicamp mesmo [...] eu já estava na faculdade de Educação e eles
estavam no instituto de estudos linguísticos no IEL (T2, grifos nossos).
Sobre suas pesquisas no Ensino de Ciências, e os avanços que tem notado
na sua linha de investigação, podemos perceber que essas já eram voltadas para o
Ensino de Ciências desde a especialização, pois, mesmo dentro de um programa
de pós-graduação em Educação durante o mestrado e o doutorado, a professora
fazia pesquisas na área de Ensino de Ciências, pois, não havia pós-graduação
strictu sensu nessa área naquela época. Em seus relatos, percebemos também a
importância da articulação de várias áreas do conhecimento, que fortaleceram as
discussões mais focadas nos conteúdos e, consequentemente, ampliaram o olhar
para questões da Linguagem no Ensino de Ciências:
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Os estudos da linguagem, do funcionamento da linguagem, que eu acho que
é um foco novo que vai aparecer então a partir da década de 90, a gente
tinha pesquisa em Ensino de Ciências, mas eram iniciativas um pouco
individuais e muito... muito marcada com o pessoal da didática, da área da
pedagogia e da didática da Educação no geral, então, a área vai se
configurando enquanto Ensino de Ciências, preocupada também com os
conteúdos, a partir então de 90 é que vovê então, um professor de didática
trabalhando uma disciplina da didática das Ciências, por exemplo. (T3, grifos
nossos)
Referente às linhas temáticas que pesquisou e as quais se dedica
pesquisar na área de Ensino de Ciências podemos perceber que, de uma maneira
muito forte, a linguagem sempre esteve permeando suas pesquisas, sejam elas na
Formação de Professores, no Ensino de Ciências, nas relações Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS), Epistemologia, pois, todos esses assuntos envolvem o
funcionamento da linguagem. Percebemos, também, uma nova temática em suas
pesquisas, a Colonialidade do Saber/Poder.
O fato de eu trabalhar com questões de funcionamento da linguagem, é...
você tem uma linha de pesquisa meio transversal. Por quê? Porque essa
questão ela está em todas as frentes: Formação de Professores, Ensino de
Ciências, CTS, Epistemologia, tudo isso envolve a questão do funcionamento
da linguagem, né? Então eu tenho trabalhado nessa linha inclusive o PPGECT
[Programa de Pós Graduação em Educação Científica e Tecnológica da UFSC,
no qual é docente] tem uma linha também de pesquisa sobre isso, é uma linha
que vai ser consolidada em 2000, quando você percebe que as pesquisas de
concepções alternativas de ensino de ciências que eram bastante procuradas,
bastante desenvolvidas, e... por uma perspectiva Piagetiana muito
psicológica, ela vai sendo questionada, na década de 90 principalmente por
causa do Vygotsky também, que... que fala daí dessa importância da
linguagem, da construção da linguagem na criança, ele vai trazer isso aí, que
no construtivismo [...] E então você tem uma consolidação da área de
linguagem, da importância de pesquisar isso a partir dos estudos do Bakhtin,
do Vygotsky e também da análise discurso Francesa [...] essas questões de
linguagem e CTS, me levaram então a trabalhar no Timor-Leste, com projeto
de formação de professores em serviço [...] com toda a história que passou o
Timor de invasão, da... da Indonésia e depois de sua libertação em 2002,
então tudo isso me fez caminhar para uma perspectiva [...] que é questão de
Colonialidade do Saber e do Poder, que são estudos Latino-Americanos é...
de como o fomos colonizados? Como a ciência é colonizada ainda? Como a
gente é colonizado pelos Estados Unidos pela Europa, essa visão eurocêntrica
que vem então de lá, e que a gente também estava fazendo isso com o Timor.
E isso nos fez perceber Colonialidades internas, de como o que o Sul do que
o Sudeste faz com o Norte? E o que... que faz com o Nordeste? (T4, grifos
nossos).
Em relação às tendências que a entrevistada tem observado nas pesquisas
sobre o Ensino de Ciências nos últimos anos ela ressalta que, a partir dos anos 2000
houve uma enfraquecida das pesquisas de concepções alternativas focalizadas em
Piaget e, então, se teve um avanço em várias perspectivas da análise crítica do
discurso da linha francesa. Nesse sentido, ela acredita que o CTS tinha uma
perspectiva crítica sobre ciências, porém, a partir dessa época, ela se organiza de
uma forma melhor e acaba agregando as perspectivas teórico críticas sobre ciência
e tecnologia. Também relata que a Formação de Professores tem avançado muito
a medida que se diminui a lacuna entre a escola e a universidade.
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Bom... eu acho que teve então uma enfraquecida nas pesquisas de
concepções alternativas de como as crianças entendem determinadas coisas,
que era muito focalizado no Piaget. Acho que tem um texto, Mortimer foi
muito importante, porque ele era um cara, que manjava isso, que
pesquisava isso, e de repente ele vem e faz a crítica trazendo então Bakhtin,
como um elemento, um teórico muito importante para pensar linguagem.
Então acho que o Mortimer também baseado em compreensões de fora, ele
escreve um artigo muito importante, que vai então, também ser um divisor
de águas em minha opinião né, é... de como a linguagem é importante.
Então acho que a partir de 2000 é incrível, como avançou, em várias
perspectivas: na análise crítica do discurso, análise de discurso Francesa, os
estudos do discurso em Foucault e no Bakhtin... [...]... o CTS acho, que cresceu
bastante também de 2000 para cá. A gente tinha uma perspectiva crítica
sobre ciências, mas o era organizado nesse nível né, que acaba então
agregando os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, acabam agregando
essas perspectivas teóricas críticas sobre a Ciência Tecnologia... [...]... a
formação de professores também, acho que tem vários avanços, vários
avanços na questão dos saberes, a gente a escola como parceira da gente.
Essa diminuição do fosso entre a universidade e a escola (T5, grifos nossos).
Sobre os novos rumos de suas pesquisas no Ensino de Ciências a
pesquisadora esclarece o que seriam as discussões sobre Colonialidade, uma
questão até pouco tempo não discutida dentro do Ensino de Ciências, pois, muitas
vezes, as pesquisas no Brasil importam problemas que não são nossos, que seriam
de outros países. Ela também nos chama atenção para as questões de
Colonialidade dentro do Brasil, um país muito grande, no qual o contexto do Norte
é diferente do Sul, destacando que as pesquisas e formações de professores
precisam levar isso em consideração.
Fui a congressos internacionais em Ensino de Ciências, e a gente percebe que
nós acabamos importando os problemas que são deles, (risos). A gente não
pensa nos nossos problemas a gente pensa, às vezes, em problemas que são
deles e a gente faz pesquisa aqui com problemas que não são nossos, então
é por isso que eu acho que falta [...] falta essa ruptura talvez. Em relação a
essa perspectiva eurocêntrica que a gente tem em pesquisa no Ensino de
Ciências também, de importar problemas, de não pensar os nossos
problemas, de fazer isso com regiões que são mais pobres, de tentar uma...
uma base curricular comum em um país tão gigante como é o Brasil, um livro
didático para o Brasil inteiro, também. Na educação em qualquer região do
Brasil, você não tem articulações com as comunidades locais, e o Ensino de
Ciências fica muito distante, porque é um Ensino de Ciências que eu estou
aqui chamando com efeito de Colonialidade, que a gente acaba dando mais
ênfase às coisas que não são importantes no nosso cotidiano. Outra coisa
que eu acho que é importante também, então... para trabalhar com isso, é
uma perspectiva de formar um professor intercultural, um professor que
esteja preocupado com essas questões, essas questões de diálogo de
saberes, dessas expectativas de diminuição de desigualdade social, as
políticas públicas, acho que tem um movimento (T6, grifos nossos).
Sobre o surgimento da linha temática que pesquisa, a entrevistada relembra
dos autores estrangeiros que iniciaram os pensamentos sobre linguagem - como
Foucault, Pêcheux e Bakhtin. Dessa forma, ela considera que desde a época de
1920 já se inicia a temática Linguagem e ela fala que essa temática se fortalece no
Brasil com os estudos sobre a AD francesa que vem das traduções e estudos das
obras de Pêcheux por Eni Orlandi e as questões de discurso e linguagem do
Foucault e Bakhtin traduzidos e estudados no Brasil por Isabel Martins e Eduardo
Mortimer.
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A gente trabalha com análise de discurso francesa, mas, esse eixo temático,
ele não é formado somente pela análise discurso francesa, ele envolve muitas
outras linhas, que vem então Isabel Martins, aí o Mortimer, é... o pessoal do
Foucault, que vai trabalhar com questões de discurso, mais pensando na
questão da linguagem, em diferentes perspectivas teóricas, vários grupos no
Brasil e no exterior, que vão então trazer vários autores que vão nos ajudar a
pensar essas questões, sejam eles da psicologia, da linguística, da filosofia,
que aí você pensa no Foucault, no Pêcheux, no próprio Bakhtin, então, gente
de várias áreas, que vão então, contribuir para a consolidação das áreas,
mas eu vejo que são vários autores, vários grupos pensando em um objeto
de estudo, que é a linguagem, e aí, é isso o que consolida área (T7, grifos
nossos).
No tocante a sua participação no processo de constituição da linha de
pesquisa em Linguagem, Suzani Cassiani compreende que sua contribuição está
relacionada ao pensar o Ensino de Ciências com o atravessamento da linguagem,
tanto na aprendizagem dos alunos, quanto na Formação de Professores e nas
relações entre Ciências, Tecnologia e Sociedade. Além disso, ela discorre sobre o
que podemos considerar uma grande contribuição para a linha temática de
Linguagem, que é sua participação na formação dessa linha dentro de um dos
maiores programas de pós-graduação em Ensino de Ciências no Brasil.
É... A contribuição então nossa, eu acho que é pensar então essa educação,
nesse atravessamento que é a linguagem... Em termos de formação de
professores, em termos de pensar uma leitura escrita para o Ensino de
Ciências, pensar uma Ciência, uma Tecnologia, pensar as desigualdades
sociais, então é... Eu acho que a gente tem trabalhado não somente com a
questão da linguagem, mas ela favoreceu uma perspectiva bastante
importante para pensar a Educação em Ciências, que não se tem, que quase
não tem, até fora do Brasil, não tem [...] a participação aqui do grupo, de
várias pessoas que se formaram aqui e foram trabalhar em outras
Universidades também [...] Quando eu vim trabalhar aqui no PPGECT não
tinha, não tinha a linha na verdade (T8, grifos nossos).
Quanto aos autores que a entrevistada vem utilizando como referenciais
teóricos em suas pesquisas, são mencionados os relacionados à Linguagem e a
Análise de Discurso da linha francesa. Em relação aos autores que a entrevistada
percebe como tendência são citados os que tratam questões sobre Colonialidade,
que é um assunto pelo qual estão permeadas suas pesquisas. Ela também destaca
que a educação é multidisciplinar e que, por isso, suas pesquisas se utilizam de
autores de várias áreas como da Psicologia, Filosofia, Sociologia e Linguística.
Bom, eu tenho trabalhado com autores que a gente está chamando de um
CTS Latino-Americano, porque o que eu acho que o CTS que está nos
parâmetros curriculares, também sofreu um efeito de Colonialidade que é
copiar o CTS espanhol, que não trata dos nossos problemas tá, então nós
temos trabalhado com autores Latino-Americanos de CTS, para pensar os
Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, a gente tem ido a congressos
também aqui da América Latina [...] por exemplo, vou falar alguns deles né,
que tem ajudado a gente pensar nessa questão da Colonialidade, tá? O
Walter Mignolo, Anibal Quijano, Enrique Dussel, Ramón Grosfogel. São
autores dos estudos da Ciência e da Tecnologia, que vão trabalhar então,
essas questões de Colonialidades da América Latina, tem o Boaventura Sousa
Santos ele não é Latino-Americano, mas ele é importante para a gente
entender algumas dessas questões. A gente trabalha com a Eni Orlandi que
se baseia nos estudos do Pêcheux, na análise de discurso da linha francesa.
Tem alguns autores que são da Austrália, por exemplo, a professora
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Alencardi, que pensa em teorias pós-coloniais na Educação em Ciências. Acho
que são autores que estão assim, na mesma reflexão que a gente... e que
acabam reverberando coisas que a gente falando também dentro do
Ensino de Ciências - a gente acaba então trazendo autores de outras áreas,
que isso é a Educação, a Educação é assim, a gente trabalha com vários
autores, de várias áreas, da filosofia, da psicologia, da linguística, da
linguística, da sociologia, e ai a gente acaba fazendo então, uma reflexão. E
quando a gente junta a Educação em Ciência, a gente traz o conteúdo
também da Biologia, da Física, da Química. Então a nossa área é muito
interdisciplinar, transdisciplinar, porque a gente traz autores de vária áreas,
para pensar os conteúdos (T9, grifos nossos).
Acerca das metodologias que utiliza em suas pesquisas a entrevistada relata
o uso da Análise de Discurso não como metodologia, mas como referencial
teórico, e nos conta que seus trabalhos se baseiam na observação participante,
com utilização de instrumentos como o diário de campo. Ela também justifica o
porquê das suas escolhas em relação à metodologia de análise utilizada.
A gente tem trabalhado com análise de discurso, como metodologia de
pesquisa também, além de ser uma referência teórica para a gente. E temos,
assim... nós temos tentado desenvolver um dispositivo analítico, né? Sobre
análise do discurso, porque a gente acha que dentro da nossa área de
Ciências, a gente que é de Física, Química, Biologia, a gente tem... A gente
gosta de receitinha de bolo (risos). A gente tem uma visão muito positivista
assim... Mesmo sendo da Educação, uma visão muito positiva da Ciência,
então quem desenvolve metodologias de pesquisa bem quadradinhas, elas
são um sucesso, né? Elas acabam fazendo muito sucesso, como referências
bibliográficas... E a gente também se baseia em observação participante [...]
nossos trabalhos envolvem interações dentro da sala de aula, na escola e...
Aí, a gente tem [...] trabalhos que contemplem uma perspectiva
etnográfica, que vem do campo da Antropologia, de diário de campo, de
fazer observações, bem abertas... e associando então com a análise de
discurso, eu acho que é isso aí! (T10, grifos nossos).
Em relação às contribuições que da sua linha temática para o Ensino de
Ciências a pesquisadora acredita que tem orientado vários aportes interessantes
para o Ensino de Ciências e cita, com grande orgulho, as contribuições de suas
pesquisas e de seus orientandos para os avanços em Timor-Leste, país do sudeste
asiático, no qual o Brasil desenvolveu um projeto de cooperação internacional em
diversas áreas, dentre elas, a de educação, entre os anos de 2005 e 2016.
Quando você pensa então na questão do funcionamento da linguagem, eu
acho que a gente tem dado várias contribuições, muito interessante para
Ensino de Ciências, tanto na Educação não formal, quando você pensa em
outros aspectos fora da sala de aula. Esse programa que a gente vivenciou
no Timor-Leste [...] Acho que é um diálogo de saberes o que aconteceu, eu
vejo então um avanço no Timor, por exemplo, que é um país o pequeno,
um grupo de pesquisa no Ensino de Ciências, que a gente fala que é o irmão
mais novo do nosso grupo... que agrega estudantes e professores da
Universidade do Timor-Leste, que desenvolvem pesquisas sobre Ensino de
Ciências, usando análise de discurso e CTS, para pensar, é... Eles não estão
usando ainda esses autores de Colonialidade e tal, mas eles usam Paulo
Freire, que é um dos nossos autores também, que ajuda a pensar essas
questões de Colonialidade (T11, grifos nossos).
Na fala da professora entrevistada podemos compreender a necessidade
das pesquisas em Linguagens no Ensino de Ciências quando ela discorre sobre as
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dificuldades que os alunos tinham com a leitura e as interpretações de textos
propostos em livros didáticos. Percebemos a importância de o professor
considerar que a linguagem não é transparente, que nem todos os alunos
compreendem da mesma forma o discurso que saí do professor.
A pesquisadora também nos faz repensar os efeitos de colonialidade em sala
de aula, e a importância de o professor abordar os conteúdos articulando com o
cotidiano dos alunos e nos deixa um convite a refletir sobre os currículos de nossas
escolas, um país tão grande como o Brasil com um único currículo nacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este breve levantamento sobre o histórico da Linguagem no Ensino de
Ciências, além de nos permitir compreender sua origem, emergente da
preocupação de professores com estudantes que tinham dificuldades de leitura e
interpretação de textos e imagens, nos permitiu perceber os caminhos percorridos
pelos pesquisadores da área, bem como, suas filiações teóricas e metodológicas.
Possibilitou-nos refletir a importância da linguagem para o processo de
ensino-aprendizagem, quando a entrevistada nos chamou a atenção para o fato
de que a interpretação contempla deslocamentos de sentidos. Muitos professores
ainda acreditam que a linguagem é transparente, pensam que a informação é
“captada” pelos alunos tal qual estava em sua mente e que todos os alunos
produzem os mesmos sentidos sobre sua fala. As pesquisas no Ensino de Ciências
precisam ser focadas na formação de professores para mudar essa concepção de
linguagem que muitos têm, e que é herança dos modelos tradicionais de educação,
os quais precisam ser constantemente repensados.
Dessa forma, com a realização deste levantamento, pudemos fazer uma
reflexão sobre as interações em sala de aula, na qual existem muito sujeitos, com
contextos sócio-históricos-culturais diferentes, diversos conhecimentos e
expectativas, o que gera uma infinidade de interpretações possíveis para um
discurso, o que não é diferente no caso do Ensino de Ciências.
As reflexões aqui proporcionadas também nos permitem relembrar o
surgimento das pesquisas sobre linguagem na área de Ensino de Ciências, quando
a entrevistada relata sobre as dificuldades, impostas devido à concorrência, para
ingressar no mestrado, mesmo que em Educação, na época, por existirem poucos
programas de pós-graduação no Brasil. Além das ações para organizar cursos de
especialização em Ensino de Ciências que tenham como linhas temáticas a
Linguagem até chegar ao que temos hoje, mestrados e doutorados bem-
conceituados, com a formação de bons pesquisadores na área.
Cientes da impossibilidade da completude da linguagem, um dos preceitos da
AD, esperamos que este texto possa contribuir na divulgação da importância da
Linguagem no Ensino de Ciências para que, cada vez mais, os professores dessa
área se conscientizem da necessidade de estudar questões da linguagem, levando
em consideração que a sala de aula é composta por vários sujeitos, que podem ter
interações diferentes, produzir sentidos dos mais diversos, a partir dos conteúdos
científicos que lhes são apresentados.
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A historical survey of researches in
Language in Science Teaching in Brazil
ABSTRACT
In the present article a brief historical survey of researches in Language in Science Teaching
in Brazil is shown. In order to identify the needs and the starting point of these researches,
an important researcher was used in the area, in order to understand the constitution of
the thematic line of Language and Teaching of Sciences, its main trends and characteristics,
the most relevant theorical researchers of the area, the research and analysis
methodologies used to research the Language in Science Teaching and the future direction
of this line of research. For that, a semi-structured interview was conducted with a doctor,
professor and researcher at the Federal University of Santa Catarina - UFSC. Using as a
theoretical-methodological support the Discourse Analysis of the French line, we tried to
understand some aspects of the researcher's discourse on relevant factors to the
constitution of this research area.
KEYWORDS: Language. Search. Science teaching.
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Recebido: 31 jan. 2018
Aprovado: 12 abr. 2019
DOI: 10.3895/actio.v4n1.7707
Como citar:
LAVARDA, T. C. F. S; PEREIRA, P. B. Um levantamento histórico das pesquisas sobre linguagem no ensino
de ciências no Brasil. ACTIO, Curitiba, v. 4, n. 1, p. 46-62, jan./abr. 2019. Disponível em:
<https://periodicos.utfpr.edu.br/actio>. Acesso em: XXX
Correspondência:
Tabatta Cristina Fritzen da Silva Lavarda
Rua Sylvio Zeny, n. 106, Portão, Curitiba, Paraná, Brasil.
Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.