ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
A partir da vertente francesa da Análise de Discurso, analisamos a
materialidade discursiva dos filmes Interestelar (NOLAN, 2014) e Perdido em
Marte (SCOTT, 2015). A escolha dessas duas obras para análise se deve à grande
popularidade de ambos (crítica e bilheteria), mas principalmente por
compartilharem as principais categorias de significação elencadas em nosso
recorte discursivo (ambiente, disciplinaridade, neutralidade e salvacionismo da
Ciência), ou seja, os filmes dão circularidade a discursos congruentes,
consequentemente materializando determinadas ideologias. Nesse sentido, é
imprescindível que a linguagem seja compreendida como “mediação necessária
entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2005, p. 15).
A Análise de Discurso abrange práticas discursivas com diferentes
materialidades significantes (ícones, letras, imagens, sons etc.), sendo o texto uma
unidade central no trabalho do analista. O texto (unidade de análise) não é apenas
um dado linguístico, tampouco um conjunto de caracteres escritos e
decodificáveis. O texto é um fato discursivo heterogêneo: “quanto à natureza dos
diferentes materiais simbólicos (imagem, som, grafia etc.); quanto à natureza das
linguagens (oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição etc.); quanto às
posições do sujeito” (ORLANDI, 2005, p. 70). Dito de outro modo, é inegável o
trabalho da ideologia sobre múltiplas materialidades simbólicas. Assim como no
caso dos textos escritos, as possíveis interpretações de uma materialidade
significante (verbal, visual etc.) não são fixas — estão sempre “em relação a”.
A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da
linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante ainda é
pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que as linguagens, ou
as diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades,
significam de modos distintos (ORLANDI, 1996, p. 9).
A linguagem não é neutra, transparente, uniforme e nem natural. Em sua
opacidade, se constitui como um campo propício para a manifestação da ideologia
pelo discurso. Nessa perspectiva, ideologia não se trata de ocultação/distorção da
realidade ou de visão do mundo, mas de um processo que torna possível a relação
palavra/coisa; é o reconhecimento de que os significantes não estão diretamente
ligados aos significados, nem são reflexos de evidências (ORLANDI, 2005).
A ideologia possibilita múltiplas formas de preenchimento da lacuna entre
palavras (ícones, grafias, sons etc.) e coisas (objetos, ideias, conceitos, fenômenos
etc.) tornando possível a relação entre o pensamento, a linguagem e o mundo em
um processo no qual o sujeito se insere e significa historicamente na sua práxis
simbólica. No cinema, não é diferente; a linguagem fílmica também é prenhe de
ideologias que se materializam em determinados discursos, textual, verbal,
audiovisualmente.
Todo dizer — seja no campo das interlocuções cotidianas ou nas esferas de
produção artística — encontra-se no cruzamento de dois eixos: o da memória
(interdiscurso ou constituição) e o da atualidade (intradiscurso ou formulação). A
memória representa a base do dizível que constitui os novos discursos pela sua
historicidade, enquanto a atualidade compreende a apropriação e formulação dos
dizeres pelo sujeito em determinadas situações. Assim se dá a constituição e
formulação dos sentidos (ORLANDI, 2005).