Página | 80
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
Os discursos nos filmes de ficção científica:
ensino de ciências e a produção de sentidos
na perspectiva socioambiental
RESUMO
Júlio César D. Ferreira
ferreirajcd@ufpr.br
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Matinhos, PR, Brasil
Roberto G. Barbosa
robertobarbosa@ufpr.br
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Matinhos, PR, Brasil
O presente artigo consiste na análise dos discursos que circulam nos filmes de ficção
científica, com ênfase nas noções de ambiente, disciplinaridade, neutralidade e
salvacionismo da Ciência. Esses discursos, em suas várias esferas sociais e condições de
produção, se manifestam nas relações de ensino e aprendizagem da educação em
ciências. A partir da vertente francesa da Análise de Discurso, analisamos a materialidade
discursiva dos filmes Interestelar (NOLAN, 2014) e Perdido em Marte (SCOTT, 2015). A
escolha dessas duas obras para análise se deve à grande popularidade de ambos, mas
principalmente por compartilharem as principais categorias de significação elencadas em
nosso recorte discursivo (ambiente, disciplinaridade, neutralidade e salvacionismo da
Ciência), ou seja, os filmes dão circularidade a discursos congruentes, consequentemente
materializando determinadas ideologias. Muitas vezes, os filmes de ficção científica
propagam discursos de uma ciência ideal, isto é, ocultam valores, preconceitos e
ideologias, sobretudo os fatores de ordem social, ambiental e econômica. Tais discursos
constroem realidades e acabam fundamentando práticas. Nossas análises indicam a
necessidade de uma educão cienfica e ambiental crítica que problematize discursos
presentes o só em filmes, mas em outros meios e espaços de comunicação e
significação. Os filmes de ficção científica possuem grande potencial no contexto do
ensino das ciências, o somente enquanto mobilizadores da criticidade, mas de um
modo mais amplo: as obras de ficção o formas de significação e de mediação que,
quando trazidas para o campo pedagógico, potencializam a produção de sentidos para o
conhecimento científico, além de ampliar a formação cultural dos sujeitos.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção Científica. Linguagem. Discurso. Ensino de Ciências.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
INTRODUÇÃO
A linguagem é uma prática, não de ações ou atos, mas uma prática de
sentidos, de intervenção no real (ORLANDI, 2005). Historicamente, homens e
mulheres se relacionam com sua realidade natural e social pela conjunção entre
linguagem, pensamento e mundo. Além disso, na linguagem se manifestam
discursos e respectivas ideologias, ou seja, a ideologia se materializa no dizer, seja
nos discursos cotidianos, políticos, religiosos ou nos discursos que circulam nas
produções artísticas e culturais.
Os filmes, em seus variados gêneros, transmitem ideias, pensamentos,
valores, modos de agir e de pensar. A maioria das produções cinematográficas
largamente difundidas no Brasil advém dos Estados Unidos (doravante EUA), país
que adota uma política social e econômica hegemônica e unilateral. No que
concerne aos filmes de ficção científica, muitas obras acabam reproduzindo
determinados discursos e ideologias em torno da tecnociência, não raramente
danosas a uma formação ambiental crítica dos sujeitos dentro e fora da escola.
Por outro lado, a ficção, em uma base de racionalidade científica, permite ao
sujeito o estranhamento, a mobilização e produção de sentidos, desnaturalizando
a monologia do discurso científico. Na educação em ciências, essas características
constitutivas da ficção científica podem engendrar práticas efetivas no que diz
respeito à mediação didática dialética apontada por Lopes (1999, p. 209):
“processo de constituição de uma realidade a partir de mediações contraditórias,
de relações complexas, não imediatas. Um profundo sentido de dialogia”. As
relações conflituosas e de complementaridade entre ciência, ficção científica
e meio ambiente representam, portanto, grandes possibilidades de mediação
didática.
Este trabalho consiste na análise dos filmes Interestelar (NOLAN, 2014) e
Perdido em Marte (SCOTT, 2015), com ênfase nos aspectos discursivos das noções
de ambiente, disciplinaridade, neutralidade e salvacionismo da Ciência,
características presentes não somente no discurso ficcional hollywoodiano, mas
em estereótipos sobre ciência e cientista, em discursos propagandísticos de
divulgação científica e em toda a grande mídia. Todos esses discursos, em suas
várias esferas sociais e condições de produção, se manifestam nas relações de
ensino e aprendizagem da educação em ciências. Nesse sentido, a afirmação de
que o ensino das ciências é compromisso científico e social (CARVALHO;
CACHAPUZ; GIL-PÉREZ, 2012) ganha contornos cada vez mais amplos.
Ensinar ciências requer a abordagem de diversas perspectivas de estudo de
suas temáticas, inclusive as esferas sociopolítica, sociocultural e socioambiental de
produção do conhecimento científico-tecnológico. As múltiplas linguagens da
contemporaneidade, sobretudo o cinema de ficção científica, propagam questões
e discursos em torno da ciência cuja mediação escolar se faz mais do que
necessária. A aprendizagem das ciências é uma aprendizagem multicontextual,
vinculando-se à história, à política, à cultura, às questões socioambientais dentre
outras determinações do século XXI. Nos dois filmes analisados notamos alguns
desses discursos e contextos que, a nosso ver, merecem atenção no campo do
ensino de ciências.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ficção Científica, Epistemologia e Ensino das Ciências
na ficção científica uma apropriação de diferentes formas de linguagem
para a abordagem dos mais diversos temas. Na literatura, muitas vezes ocorrem
apropriações da metalinguagem científica, como podemos observar nas obras de
Júlio Verne, Herbert George Wells, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury
entre outros. O cinema, por meio de releituras das obras ou não, utiliza a
materialidade audiovisual no desenvolvimento das histórias.
A ficção científica (FC) afirma-se como narrativa da conjectura ao lançar-se
sobre a própria essência de toda ciência, a conjecturabilidade (ECO, 1989). A ficção
pode funcionar como uma narrativa de antecipação tanto das conquistas
científicas quanto das suas implicações socioculturais e sociopolíticas.
Ciência e ficção científica provocam processos de conjectura simetricamente
inversos, pois, enquanto a ciência recorre a um resultado factual do mundo real
para a elaboração de uma lei possível, provisoriamente válida somente em um
mundo modelo, a ficção científica imagina um resultado contrafactual suscetível a
uma lei real, cientificamente aceita ou não. Além disso, a FC pode funcionar como
uma narrativa de antecipação tanto das conquistas científicas quanto das suas
implicações sociais. Dito de outro modo, a ficção nem sempre antecipa para
estimular o progresso científico, como é característico em Júlio Verne na segunda
metade do século XIX, por exemplo, mas antecipa a ciência para prevenir futuros
abomináveis justamente para que não aconteçam, como em Admirável mundo
novo (1932), romance distópico de Aldous Huxley (HUXLEY, 2006).
Ainda que os vínculos entre ficção científica, ciência, cultura e sociedade nem
sempre sejam harmoniosos e estáveis, a consideração desses elementos,
sobretudo no campo pedagógico representa grandes possibilidades de produção
de sentidos para os sujeitos, desde uma base fraseológica superficial
(metalinguagens, terminologias, imagens, léxicos etc.) até o plano discursivo e
epistemológico (relações conceituais, processos, paradigmas etc.).
A ficção científica, “uma literatura transversal, um canal de comunicação que
põe a cibernética em contato com o surrealismo, o humor em contato com a física
nuclear, e assim por diante, até o infinito” (TAVARES, 1992, p. 73), desde os seus
primórdios no século XIX com Frankenstein (SHELLEY, 1818) até os atuais
blockbusters no cinema, vem se constituindo como um amplo e complexo
universo, sempre em íntima relação com as ciências. Seja nos prenúncios
“teóricos” de Verne ou de Wells, seja nas distopias “preventivas” de Huxley ou de
Orwell, ciência e ficção científica compartilharam questionamentos em comum. É
difícil mensurar o quanto esses campos se afetam mutuamente, no entanto é
inegável o fato de haver essa influência (FERREIRA, 2016).
Constituída como cultura, a ficção científica está no campo da diversidade, da
ruptura e da heterogeneidade. Para Eagleton (2011, p. 51), “a ficção científica
pertence à cultura popular ou ‘de massa’, uma categoria que paira ambiguamente
entre o antropológico e o estético”. No multiverso cultural também é possível
situar a FC na esfera epistemológica, isto é, a FC dispõe de elementos ficcionais
para dar circularidade a discursos, ideias e debates sobre a tecnociência e, por
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
outro lado, legitima seu valor literário ao ultrapassar a realidade, ao
desautomatizar o discurso científico.
O processo de conjectura ficcional é também um processo de transformação
da realidade, mas não uma transformação no sentido sociopolítico, social e
lentamente produzida. Trata-se de uma transformação pautada por elementos
contrafactuais que incidem nas estruturas de nossas representações sobre o
mundo, extrapolando essa realidade aos limites de nossa imaginação. Esse
movimento pode desnaturalizar os efeitos de evidência do discurso científico, o
sempre já-lá da ciência, implica em estranhamento e na necessidade de
instauração de variados processos cognitivos frente a um objeto científico
nebuloso, apresentado às avessas.
Não raramente nos deparamos com questões do tipo “seria tal fenômeno
possível no mundo real?”, quando na apreciação de uma obra da ficção. Tais
questionamentos funcionam como gatilhos para atividades cognitivas estranhas
ao sujeito em relação ao conhecimento científico. Consistem em análises
conceituais diferentes, sob outras perspectivas e modos menos institucionalmente
escolarizados de abordagem dos temas científicos. a possibilidade de
especulação a respeito da realidade, do “real”, do realismo (FERREIRA, 2016).
A ciência também é marcada por processos históricos, rupturas
epistemológicas e seus desdobramentos em outras esferas como a sociopolítica e
a sociocultural. É por esse viés que a ficção científica se apresenta como um amplo
universo de exploração didática (na acepção mais conceitual da ciência), mas
também de múltiplos gestos de leitura dos produtos científico-tecnológicos que
afetam decisivamente a vida cotidiana (na atualidade, no passado e em projeções
para o futuro, o que é próprio da FC).
A ficção científica dispõe de elementos ficcionais que dão circularidade a
questões em torno de temas científicos e tecnológicos na esfera sociopolítica,
reafirmando o aspecto sociocultural da ciência (PIASSI, PIETROCOLA, 2009). No
domínio cultural e por extensão, no linguístico a ficção científica também está
na ordem do discurso. Pela incompletude estruturante da linguagem, o discurso
ficcional, voltado ao devaneio e à imaginação, esamalgamado aos sentidos do
discurso científico e representa um ponto de apoio para a significação científica
(escolarizada ou não), seja no nível conceitual-fenomenológico, no histórico-
metodológico ou no sociopolítico (FERREIRA, 2016).
Em sintonia com Eco (1989), novamente sublinhamos uma das principais
características da FC: suas hipóteses e conjecturas sobre a ciência e a realidade. As
relações cognitivas, de estranheza e de (re)formulação de explicações das causas
e consequências contrafactuais no universo da ficção científica, talvez sejam o seu
maior potencial do ponto de vista pedagógico. Pensar sobre a ciência, mas também
pensar sobre esta em outros mundos possíveis, estruturalmente diferentes do
nosso, pode representar uma compreensão mais alargada da ciência, sobretudo
em aspectos essenciais como a especulação de suas teorias (alteração de
parâmetros, referenciais, condições de produção e de aplicação das leis etc.).
O discurso ficcional pressupõe, total ou parcialmente, uma racionalidade
científica e essa lógica cognoscitiva na narrativa da ficção científica representa o
que Suvin (1979) chama de estranhamento cognitivo. Para o autor, essa definição
favorece a tradição literária da ficção científica em sua constituição histórica,
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
distinta da literatura naturalista ou das utopias não-ficcionais. Suvin (1979) se
refere à FC como um espectro ou propagação literária que se estende do extremo
ideal recreativo do ambiente empírico da obra até o pleno interesse cognitivo por
uma novidade estranha, o novum.
“Para que as crianças compreendam, se encantem e se entusiasmem, é
melhor, afirmo, escolher um herói que viaja, explora e encontra obstáculos
extraordinários…” (SERRES, 2007, p. 31) é o que diz Michel Serres em referência às
histórias de/das viagens extraordinárias de Júlio Verne que, segundo ele, nutrem
a ambição de percorrer por inteiro: o mundo global e o saber integral. Não por
acaso, essa afirmação parece traduzir muito bem a filosofia e/ou pensamento da
ciência moderna ocidental, cuja pretensão repousa na descrição exata e completa
do mundo, bem como no domínio do homem sobre o mundo natural, mesmo que
seja por um conjunto de disciplinas isoladas. Um idealismo narrado como uma
odisseia.
A convicção característica dos fundadores da ciência moderna vai muito mais
longe. Galileu e seus sucessores pensam a ciência como capaz de descobrir a
verdade global da natureza. Não somente a natureza é escrita numa
linguagem matemática decifrável pela experimentação, como essa linguagem
é única; o mundo é homogêneo: a experimentação local descobre uma
verdade geral (PRIGOGINE; STENGERS, 1984, p. 32).
Verdade expressa por meio de uma lei universal, que se aplica
simultaneamente ao mundo sublunar e supralunar aristotélico. Uma ciência
legisladora cujo anseio de seus representantes é poder esgotar as possibilidades
de compreensão racional dos fenômenos. Essa racionalidade envolve entre outras
coisas o desprezo a outras formas de pensar e sentir, bem como a outras culturas,
ou melhor, “a forma sistemática que a física clássica tomou, a sua pretensão de
constituir uma descrição do mundo fechada, coerente e completa, expulsa o
homem do mundo que ele descreve enquanto habitante” (PRIGOGINE; STENGERS,
1984, p. 61). É nessa direção que a crítica da sociologia da ciência é endereçada,
pois a ciência e seu discurso de neutralidade não considerou as consequências de
suas ações, isto é, o desmatamento desenfreado das florestas, o uso
indiscriminado de agrotóxicos, a produção e a utilização de armas nucleares, como
a bomba atômica, enfim uma série de práticas adotadas sob o mote da ciência e
talvez ao seu principal slogan: o desenvolvimento e o progresso social.
Nesse aspecto, e sob um ponto de vista crítico, se nota a contradição do
discurso com a prática, do ficcional com o factual. A bióloga estadunidense Rachel
Carson expressa muito bem essa contradição quando afirma que “enquanto
caminha na direção da sua anunciada meta da conquista da natureza, o homem
tem escrito uma deprimente história de destruição dirigida não apenas contra a
Terra que habita, mas contra a vida, que com ela partilha” (CARSON, 1962, p. 101).
Aqui nota-se claramente a falseabilidade do discurso salvacionista da ciência, ora,
de que seus conhecimentos e produtos servem para resolver os problemas que
afetam a humanidade, o que representa mais um exemplo da dimensão ficcional
da ciência.
Enfim, a dimensão ficcional da ciência reside num discurso sobre a ciência e
os seus representantes, os cientistas”. Um discurso que muitas vezes é
totalmente diferente da prática científica (LATOUR, 2011), cujo objetivo é criar
imagens, objetos, partículas, fótons que vão povoar o nosso imaginário, seja por
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
meio de livros nas escolas ou nas telas do cinema. Nessa extrapolação dos limites
conceituais da ciência, as narrativas propostas pela ficção, sustentadas por uma
base de racionalidade científica, não diferem necessariamente de algumas
inferências feitas por cientistas com ideias muito à frente de sua época. A FC
apresenta um universo de possibilidades e de reflexão sobre os produtos
científicos, gerando profundos questionamentos e debates que podem (e devem)
ser aproveitados no contexto pedagógico.
Educação Ambiental Crítica
A expressão Educação Ambiental (EA) Crítica surge em oposição a educação
ambiental conservacionista hegemônica uma perspectiva que individualiza
responsabilidades, que fragmenta realidades e que oculta as verdadeiras origens
dos problemas ambientais, ou seja, que a questão ambiental como um
problema da Ciência, da Biologia, uma ciência apolítica e sem relação com a
sociedade e suas práticas.
A educação ambiental crítica se construiu como uma alternativa política e
pedagógica afinada com o socioambientalismo e com o paradigma das
sociedades sustentáveis nos termos colocados pelo, hoje já histórico, Tratado
de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade
Global. Como muitos sabem, o tratado foi fruto da construção coletiva da
sociedade civil representada por ONGs e movimentos sociais de centenas de
países na Conferência do Rio em 1992 e tem servido como referência
simbólica e política de uma EA crítica, participativa e autonomista (LIMA,
2009, p. 161).
Participativa no sentido de que haja o compromisso do Estado com o bem-
estar de todos os grupos envolvidos nos processos de tomada de decisão
referentes às políticas socioambientais, sobretudo daqueles sujeitos da agricultura
familiar, das vilas campesinas, assentamentos e também dos povos indígenas que
muito tempo sofrem com o avanço do agronegócio no Brasil. Essa hegemonia
agrocapitalista contribui para a degradação ambiental e para a expulsão de
milhares de famílias de pequenos agricultores de suas terras, seja pelo avanço das
monoculturas, seja pela inviabilização das formas de sobrevivência dessas
populações provenientes desses e de outros processos.
Perspectiva que considera a dimensão dialética entre ambiente e sociedade,
a EA crítica reconhece o amplo conjunto de práticas modos de produção,
manejo de áreas agriculturáveis, água e solo entre outros que contribuem para
devastação não apenas da fauna e da flora, mas também da cultura e das pessoas
que a produziram.
A EA crítica, portanto, transcende categoricamente a visão
comportamentalista individual que a corrente conservacionista reproduz em sua
abordagem superficial, isto é, que despreza:
a natureza dos modelos de desenvolvimento econômico; os conflitos e
interesses de classe que dão seus contornos; a abordagem ideológica da
questão ambiental, que pode ser mais neutra ou mais política; a dissociação
da degradação ambiental e social e dessa dupla degradação com a ordem
capitalista; a ausência de uma crítica da ciência e do Estado como instituições
não neutras nesse processo; a indiferenciação das responsabilidades sociais
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
dos agentes causadores dos problemas ambientais; a escassa
problematização da relação entre economia e ecologia e, dentro disso, da
desmistificação da economia como esfera autônoma e autossuficiente; entre
outros problemas (LIMA, 2009, p. 153).
Tal quadro está baseado em um modo de pensar técnico-cientificista, que vê
o mundo como algo compartimentado, no qual se desvincula, por exemplo, os
problemas ambientais dos modos de produção agrícola. Além disso, atribui aos
conhecimentos científicos o poder de resolver todas as questões de cunho
socioambiental, que eles muitas vezes criaram, como a contaminação dos
alimentos, dos solos, dos rios e do ar por agrotóxicos. Ao mesmo tempo invalida
outras formas de saber histórica e tradicionalmente produzidos. Em termos de
constituição do conhecimento científico, trata-se da adoção de uma visão
fragmentada e neutra da Ciência e dos produtos tecnológicos aplicada a um
ambiente modelo, sem gente, sem cultura, sem animais e silencioso. Por isso a
necessidade de uma educação ambiental crítica, plural, interdisciplinar e política
que rompa com
o projeto unitário de A Ciência de sua formalização e matematização como
critérios de conhecimentos últimos de legitimação do conhecimento [e
abra espaço para] a construção de um saber ambiental que transforma
conhecimentos, gera novos sentidos e produz verdades que mobilizam a
construção da realidade, libertando processos naturais e sociais que
permanecem subjugados e agrilhoados pela racionalidade científica,
tecnológica e econômica dominante (LEFF, 2011, p. 179).
Nesse viés, o ensino de ciências não pode estar desprovido de criticidade e
tomada de consciência de que, cada vez mais, ciência e tecnologia se
correlacionam a múltiplas esferas sociais e devem ser ambientalmente
ressignificadas.
Muitos dos problemas que afetam a sobrevivência da humanidade só podem
ser olhados através de uma visão holística e sistêmica. Os recursos naturais,
os direitos ambientais em harmonia com a natureza, os direitos humanos,
sociais, culturais, políticos... têm de passar a constituir um forte programa de
atividades que se oriente para uma tomada de consciência para a ação, para
uma ética de responsabilidade individual e coletiva, de compromisso, ante o
perigo e os limites em que o planeta se encontra. Em alerta vermelho,
diríamos. Impõem-se medidas que vão no sentido de um desenvolvimento
científico-tecnológico, de uma educação cidadã e de políticas locais e globais
mais justas e equilibradas, concertadas no nível das instâncias supranacionais
(PRAIA, 2012, p. 71).
O compromisso social que envolve o ensino de ciências requer dos sujeitos da
educação uma postura crítica diante das pautas ambientais, políticas e culturais do
desenvolvimento técnico-científico. Todas essas questões frequentemente
permeiam as produções do cinema, da televisão dentre outras mídias. Assim,
tornam-se relevantes as análises sobre os discursos e ideologias acerca da
conjunção tecnociência-sociedade-ambiente que se materializam nessas
produções de amplo alcance.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
A partir da vertente francesa da Análise de Discurso, analisamos a
materialidade discursiva dos filmes Interestelar (NOLAN, 2014) e Perdido em
Marte (SCOTT, 2015). A escolha dessas duas obras para análise se deve à grande
popularidade de ambos (crítica e bilheteria), mas principalmente por
compartilharem as principais categorias de significação elencadas em nosso
recorte discursivo (ambiente, disciplinaridade, neutralidade e salvacionismo da
Ciência), ou seja, os filmes dão circularidade a discursos congruentes,
consequentemente materializando determinadas ideologias. Nesse sentido, é
imprescindível que a linguagem seja compreendida como “mediação necessária
entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2005, p. 15).
A Análise de Discurso abrange práticas discursivas com diferentes
materialidades significantes (ícones, letras, imagens, sons etc.), sendo o texto uma
unidade central no trabalho do analista. O texto (unidade de análise) não é apenas
um dado linguístico, tampouco um conjunto de caracteres escritos e
decodificáveis. O texto é um fato discursivo heterogêneo: “quanto à natureza dos
diferentes materiais simbólicos (imagem, som, grafia etc.); quanto à natureza das
linguagens (oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição etc.); quanto às
posições do sujeito” (ORLANDI, 2005, p. 70). Dito de outro modo, é inegável o
trabalho da ideologia sobre múltiplas materialidades simbólicas. Assim como no
caso dos textos escritos, as possíveis interpretações de uma materialidade
significante (verbal, visual etc.) não são fixas estão sempre “em relação a”.
A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da
linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante ainda é
pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que as linguagens, ou
as diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades,
significam de modos distintos (ORLANDI, 1996, p. 9).
A linguagem não é neutra, transparente, uniforme e nem natural. Em sua
opacidade, se constitui como um campo propício para a manifestação da ideologia
pelo discurso. Nessa perspectiva, ideologia não se trata de ocultação/distorção da
realidade ou de visão do mundo, mas de um processo que torna possível a relação
palavra/coisa; é o reconhecimento de que os significantes não estão diretamente
ligados aos significados, nem são reflexos de evidências (ORLANDI, 2005).
A ideologia possibilita múltiplas formas de preenchimento da lacuna entre
palavras (ícones, grafias, sons etc.) e coisas (objetos, ideias, conceitos, fenômenos
etc.) tornando possível a relação entre o pensamento, a linguagem e o mundo em
um processo no qual o sujeito se insere e significa historicamente na sua práxis
simbólica. No cinema, não é diferente; a linguagem fílmica também é prenhe de
ideologias que se materializam em determinados discursos, textual, verbal,
audiovisualmente.
Todo dizer seja no campo das interlocuções cotidianas ou nas esferas de
produção artística encontra-se no cruzamento de dois eixos: o da memória
(interdiscurso ou constituição) e o da atualidade (intradiscurso ou formulação). A
memória representa a base do dizível que constitui os novos discursos pela sua
historicidade, enquanto a atualidade compreende a apropriação e formulação dos
dizeres pelo sujeito em determinadas situações. Assim se a constituição e
formulação dos sentidos (ORLANDI, 2005).
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
A materialidade audiovisual, objeto simlico heteroneo, requer uma
compreensão do acontecimento discursivo a partir da composição de
diferentes estruturas materiais e processos de significação. Na linguagem
lmica, por exemplo, imagens (frames em movimento), falas, músicas e efeitos
sonoros reiteram a incompletude constitutiva da linguagem na medida em que
o significam isoladamente. Esse movimento permite que novos sentidos e
tios de signifincia sejam reclamados, isto é, os limites da textualidade (e da
intertextualidade) são reconfigurados a materialidade dos sentidos é plural.
Ainda sobre o cinema, vale sublinhar que essa linguagem está repleta de
conveões técnicas e intencionalidades pprias em sua produção, não
necessariamente as mesmas dos documentários, por exemplo, mas que se
aproximam mais da estica ficcional, ainda que todas as propostas de
narrativas audiovisuais, inclusive as dos documentários, sempre explorem
algum grau de ficção.
O audiovisual não rompe com as determinações do interdiscurso. Contudo,
nessa materialidade heterogênea, novas formas de acesso à memória discursiva
são instituídas. Em uma cena, não uniformidade entre os processos de
significação próprios de cada materialidade, ou seja, o audiovisual dilata a
incompletude da linguagem ao significar tanto pela complementaridade quanto
pela contradição. A materialidade audiovisual é heterogeneamente composta pela
verbal, visual, musical etc., portanto cada uma dessas materialidades trabalha a
incompletude na outra (LAGAZZI, 2009).
Na linguagem fílmica, o movimento dos sentidos também se a partir de
seus efeitos históricos sobre objetos simbólicos, ou seja, a linguagem e os
sentidos materializam-se historicamente (ORLANDI, 2005). O discurso, contato
entre língua e ideologia, reforça o caráter de incompletude da linguagem,
especialmente a audiovisual.
A noção de recorte discursivo oferece condições propícias para a análise de
múltiplas linguagens, isto é, com o recorte o analista mobiliza diferentes
materialidades e funcionamentos discursivos, sem desconsiderar suas
especificidades e contradições (LAGAZZI, 2009). Isso se dá no movimento
dinâmico entre teoria e prática, modus operandi da Análise de Discurso. Nesse
viés, mobilizaremos recortes discursivos para a compreensão das relações
significativas entre elementos significantes (cadeias significantes), conforme será
apresentado a seguir.
ANÁLISES E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Os dois filmes concedem à Ciência o poder de salvar a humanidade (visão
salvacionista). Em Interestelar, o objetivo é salvar a raça humana de sua extinção,
mesmo que seja ao preço de abandonar a Terra e todos os seus seres vivos,
inclusive os humanos. Cooper, um agricultor-astronauta proprietário de uma
plantação de monocultura de milho deixa a Terra para aventurar-se à procura de
outros mundos possíveis para a humanidade.
Na obra de Christopher Nolan é notável a naturalização das monoculturas
agrícolas. Diante do problema ambiental das recorrentes tempestades de poeira
fenômeno climático conhecido como Dust Bowl (bacia de poeira) que afeta as
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
grandes planícies norte-americanas os personagens se referem à produção em
larga escala como o único meio de sanar o problema da fome mundial. Perderam
o trigo, passaram a insistir no plantio do milho, conforme a figura 1 (imagem obtida
durante a exibição do filme utilizaremos esse recurso para destacar
determinados elementos da análise).
Figura 1 Monocultura no planeta Terra
Fonte: NOLAN (2014).
Em Interestelar não há necessariamente uma tentativa de salvar a Terra, mas
apenas abandoná-la como se nada mais pudesse ser feito (fatalismo) não
referências à sustentabilidade, agroecologia ou produção orgânica, pois para essa
representação de ambiente o fim é inevitável. A ciência, nesse caso, não serviu
para salvar o planeta, mas para buscar outro mundo para colonizar e explorar, o
que no filme também se apresenta como um gênero de salvacionismo científico,
sobretudo do modo de produção capitalista. Os astronautas do filme vivem uma
aventura em busca de outros mundos, assim como os navegadores europeus um
dia fizeram. Cumpre salientar o aparato tecnológico utilizado na fazenda do
protagonista, as imponentes máquinas com navegação por GPS (sigla do inglês
Global Positioning System) que reforçam o apelo agrocapitalista.
Interestelar cumpre uma função recorrente nas grandes produções do
cinema norte-americano ao enaltecer o poderio econômico, científico e
tecnogico nacional, sob uma de suas ingnias preferidas: a NASA (sigla do
ings National Aeronautics and Space Administration). Por mais problemática
e assustadora que seja a situão em que se encontram os personagens do
filme, a NASA se faz presente para triunfar sempre com neutralidade, como
sugere seu conhecido lema For the Benefit of All (em portugs: “Para o
Benefício de Todos).
Vale destacar que a prodão cnico-científica humana nunca é
desinteressada, atende historicamente a determinados propósitos dos modos
de produção vigentes. Essa é uma importante perspectiva do empreendimento
científico cuja abordagem não pode ser negligenciada no ensino. A hisria das
ciências e de seus desdobramentos políticos e ecomicos são importantes
elementos curriculares na educação em ciências.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
Figura 2 EUA e NASA
Fonte: NOLAN (2014).
Na figura 2, os signos EUA (bandeira) e NASA (logomarca) não compõem o
enredo do filme por acaso. Trata-se de uma viagem interestelar, empreendimento
ambicioso que sinaliza poder, soberania, e que funciona como uma vitrine da
produção técnico-científica estadunidense. Ainda que se trate de uma obra
ficcional, não há neutralidade no discurso propagandístico de fundo, característica
muito comum na produção cultural americana. Ideologia e discurso se encontram
na composição dessa narrativa que produz sentidos para além da trama ficcional,
na exaltação de instituições reais.
Com o avanço da jornada interestelar, os personagens encontram a
possibilidade de habitação em uma estação espacial, onde, mais uma vez,
naturalizam a monocultura do milho em uma espécie de museu que exalta a
imensa propriedade terrestre do personagem Cooper. Na figura 3, o plano verde
agora curvo devido ao formato da estação espacial giratória para simulação da
gravidade mais uma vez marca a explícita representação de como é o ambiente
da obra.
Figura 3 Monocultura na Estação Espacial
Fonte: NOLAN (2014).
Interestelar realiza uma ampla abordagem da perspectiva das teorias
científicas. A possibilidade da existência de buracos negros e de buracos de
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
minhoca no universo é intensamente explorada na obra de Nolan, inclusive na
representação dessas singularidades astronômicas a partir da computação gráfica
com algoritmos baseados em equações aceitas pela comunidade científica (JAMES
et al., 2015).
Em Interestelar reverberam alguns dizeres reconhecidos no campo científico
sobre a possibilidade de ruptura no tecido do espaço-tempo, sendo o filme uma
forma de conjectura, uma especulação contrafactual que funciona antecipando e
“concretizando” o que está no plano teórico sustentado pela Teoria da
Relatividade Geral de Albert Einstein.
Passemos à análise do filme Perdido em Marte, em que as mesmas categorias
analíticas destacadas em Interestelar se manifestam, contudo enfatizaremos a
disciplinaridade da Ciência, mais notável na obra de Ridley Scott. Em Perdido em
Marte, a botânica salva o astronauta da fome e a astrofísica o salva de Marte, uma
perspectiva que enfatiza o caráter disciplinar e compartimentado das ações
humanas na apropriação da tecnociência.
Na figura 4, o personagem Mark Watney, um astronauta americano dado
como morto e abandonado em Marte em uma missão fracassada, recorre aos
conhecimentos disciplinares da Biologia para garantir sua sobrevivência
novamente a disciplinaridade e o discurso do salvacionismo científico, novamente
a primazia da NASA no material intitulado Exploration of Biological Processes on
Planet Mars (Exploração de Processos Biológicos no Planeta Marte).
Figura 4 Disciplinaridade em Marte
Fonte: SCOTT (2015).
Perdido em Marte é marcado pela prática disciplinar do protagonista. Watney,
ora mobilizando conhecimentos sobre botânica, ora lançando mão dos
conhecimentos da astrofísica ou da química, representa a excelência da disciplina
técnico-científica. Novamente, essa excelência é representada pela NASA e seus
sujeitos. Na figura 5, tanto a biologia aplicada quanto a separação química da água
na combustão do propulsor de um foguete, garantem o cultivo de batatas em uma
estufa no planeta hostil.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
Figura 5 Salvacionismo científico em Marte
Fonte: SCOTT (2015).
Mesmo se referindo a outro planeta, uma representação de ambiente na
narrativa de Perdido em Marte que expõe o objetivo colonizador da viagem, uma
prática historicamente comum na Terra e que agora se estende para Marte. Nesse
sentido, a relação do homem com o ambiente é naturalizada no filme como uma
relação de exploração.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os filmes de ficção científica objetivam exaltar o papel da Ciência e da
Tecnologia na e para a sociedade, entretanto, muitas vezes, essas obras propagam
discursos de uma Ciência ideal, isto é, ocultam valores, preconceitos e ideologias,
sobretudo os fatores de ordem social, ambiental e econômica. Tais discursos
constroem realidades e acabam fundamentando práticas, por isso destacamos a
necessidade de uma educação científica e ambiental crítica que problematize
discursos presentes não em filmes, mas em outros meios e espaços de
comunicação e significação.
A noção de ambiente é central nos dois títulos analisados. Paradoxalmente,
nessas obras a solução dos problemas ambientais não parece fazer parte dos
projetos de ação da Ciência. Interestelar sugere que não há mais nada a se fazer
pela Terra (as práticas agroecológicas sequer são mencionadas), enquanto em
Perdido em Marte os problemas ambientais da Terra nãoo mencionados.
No contexto do ensino de ciências, a questão ambiental torna-se um tema
permeado pelas disciplinas científicas e serve de mote para a compreensão de uma
realidade em que a ciência tem um papel de destaque, sobretudo no que tange
aos aspectos epistemológicos subjacentes às teorias científicas. A consideração da
dimensão ambiental na educação científica fornece uma abordagem alternativa às
práticas tradicionais dessa disciplina. De modo particular, a discussão em uma aula
de ciência poderá ir além da dimensão conceitual, fomentando um debate mais
amplo, em que se questiona a ciência e o seu papel no mundo.
Por meio de nossa análise foi possível observar que os dois filmes não
ilustram de maneira explícita os vínculos sociopolíticos da Ciência com os
empreendimentos da NASA, isto é, a ciência figura como se fosse neutra. A NASA
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
promove as viagens espaciais, mas não apresenta os propósitos das missões,
bem como a origem de seus recursos, se do Estado americano e/ou do capital
privado. A ideia de neutralidade na prática técnico-científica é amplamente
difundida nessas grandes produções cinematográficas, muitas vezes
acompanhada do discurso da disciplinaridade da Ciência e quase sempre
reforçada pelo discurso de uma Ciência salvacionista ou, inversamente, a Ciência
enquanto poder altamente destrutivo.
Outro caráter também patente nas obras analisadas é a insistência em
apontar a ciência como disciplina capaz de agir individualmente em detrimento
de outros conhecimentos e saberes construídos socialmente. um ciclo
fechado, monológico, em que uma ciência universal se propõe a solucionar um
problema local aliás, a universalidade e a localidade se confundem, sobretudo
em Interestelar. Essa visão unilateral confere uma autoridade à ciência que
legitima práticas políticas muitas vezes antiéticas e nocivas à humanidade e ao
meio ambiente, que impõe uma irracionalidade e que mostra que “a ciência não
oferece nenhuma garantia: nem segurança estável, nem certeza definitiva, nem
axiomática fechada, nem predição segura, nem lar fixo” (SERRES, 2008, p. 62).
Vale sublinhar que os filmes de ficção científica possuem grande potencial
no contexto do ensino das ciências, não somente enquanto mobilizadores da
criticidade, mas de um modo mais amplo: as obras de FC são formas de
significação e de mediação que, quando trazidas para o campo pedagógico,
potencializam a produção de sentidos para o conhecimento científico, além de
ampliar a formação cultural dos sujeitos. Os múltiplos universos dos filmes de FC
possibilitam profunda reflexão sobre os produtos científico-tecnológicos e
promovem estudos, questionamentos e debates de grande relevância
pedagógica. Isso pode se dar em quaisquer que sejam as obras,
independentemente do viés ideológico, enfim, de acordo com as abordagens
metodológicas pelas quais o professor optar.
Em todas essas questões que permeiam a educação em ciências,
escolarizada ou não, o professor sempre cumprirá um importante papel na
mediação de relações contraditórias, conflitos e discursos múltiplos, seja no nível
conceitual-fenomenológico, no histórico-metodológico ou na dimensão
sociopolítica da aprendizagem científica. Nesse ponto, reafirmamos a
importância do processo dialético de mediação didática (LOPES, 1999),
imprescindível na (re)formulação do conhecimento científico escolar, um
conhecimento que se constitui com contradições entre o senso comum, o saber
científico mais formal e estruturado e, também, os discursos com os quais os
estudantes têm contato na vida cotidiana, cultural, inclusive o universo da ficção
científica com suas conjecturas sobre o mundo. No ensino de ciências, um amplo
e complexo processo de mediação didática é imprescindível para a plena
produção de sentidos para o conhecimento científico.
A mediação didática é um trabalho dialético de articulação, (re)organização e
(re)construção de saberes na instituição escolar (LOPES, 1999). Dialético porque
requer diálogo, coerência lógica e consciência de complementaridade de
elementos coexistentes que se desenvolvem por rupturas e consequentes
retificações (CANGUILHEM, 2012). Esse processo estrutural que é a mediação
didática pode ser potencializado frente aos estranhamentos cognitivos próprios da
ficção científica, frente ao novum que essa linguagem delineia, sobretudo na
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
educação em ciências. A aproximação entre FC e ensino é, necessariamente, um
trabalho de mediação, didática, dialética, de produção de sentidos.
A apreciação do gênero de ficção científica tem muito mais a oferecer do que
a abordagem restrita de conceitos físicos, químicos, biológicos etc. o que não
quer dizer que tais conhecimentos não sejam importantes. Aliás, a estrutura
teórica da ciência (redes conceituais, leis, equações, taxonomias etc.) tem
incomensurável importância, sendo um de seus maiores atributos (FERREIRA,
2016). Para plena produção de sentidos para as ciências, o seu ensino não deve
desconsiderar, do ponto de vista dos conteúdos, as determinações conceituais e
consensuais, o que não impede que outros aspectos dos temas científicos
componham nossas práticas e que encontremos inspiração na ficção científica.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
Discourses in science fiction movies: science
teaching and the production of meanings in
the socio-environmental perspective
ABSTRACT
This paper consists of discourse analysis of science fiction movies, with emphasis on the
notions of environment, disciplinarity, neutrality and salvationism of Science. These
discourses, in their various social spheres and conditions of production, are manifested in
the teaching and learning relations of science education. We analyze the discursive
materiality of the movies Interstellar (NOLAN, 2014) and The Martian (SCOTT, 2015) from
the French side of Discourse Analysis. The choice of these two works for analysis is due to
the great popularity of both, but mainly for sharing the main categories of meaning listed in
our discursive clipping (environment, disciplinarity, neutrality and salvationism of Science),
that is, films give circularity to congruent speeches, consequently materializing certain
ideologies. Science fiction movies often propagate discourses of an ideal science, conceal
values, prejudices and ideologies, especially social, environmental and economic factors.
Such discourses build realities and end up grounding practices. Our analyzes indicate the
need for a critical scientific and environmental education that problematizes discourses
present not only in films but also in other media and spaces of communication. Science
fiction movies have a great potential in the context of science teaching, not only as
mobilizers of criticality, but in a broader way. Sci-Fi is a form of signification and mediation
that, when brought to the pedagogical field, enhances the production of meanings for
scientific knowledge, in addition to broadening the cultural formation of subjects.
KEYWORDS: Science Fiction. Language. Discourse. Science Teaching.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
REFERÊNCIAS
CANGUILHEM, G. Estudos de história e de filosofia das ciências: concernentes
aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
CARSON, R. Primavera silenciosa. Lisboa: Editorial Pórtico. 1962.
CARVALHO, A. M. P.; CACHAPUZ, A. F.; GIL-PÉREZ, D. O ensino das ciências como
compromisso científico e social: os caminhos que percorremos. São Paulo:
Cortez, 2012.
EAGLETON, T. A ideia de cultura. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.
FERREIRA, J. C. D. Ficção científica e ensino de ciências: seus entremeios. Tese
(Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.
HUXLEY, A. Admirável mundo novo. 2. ed. São Paulo: Globo, 2006.
JAMES, O. et al. Gravitational lensing by spinning black holes in astrophysics, and
in the movie Interstellar. Classical and Quantum Gravity, IOP Science, v. 32, n. 6,
p. 1-41, 2015.
LAGAZZI, S. M. Recorte significante na memória. In: INDURSKY, F.; LEANDRO
FERREIRA, M. C.; MITTMANN, S. (Orgs.). O discurso na contemporaneidade:
materialidades e fronteiras. p. 67-78. São Carlos: Claraluz, 2009.
LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
LIMA, G. F. C. Educação ambiental crítica: do socioambientalismo às sociedades
sustentáveis. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 145-163, 2009.
LOPES, A. R. C. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1999.
NOLAN, C. (dir.). Interestelar. Produção: Christopher Nolan et al. [S.l.]: Warner
Bros. Pictures, 2014. 1 DVD (168 min.).
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Petrópolis: Vozes, 1996.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas:
Pontes Editores, 2005.
PIASSI, L. P. C.; PIETROCOLA, M. Ficção científica e ensino de ciências: para além
do método de ‘encontrar erros em filmes’. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35,
n. 3, p. 525-540, 2009.
PRAIA, J. F. Trabalhar com a formação de professores de ciências: uma
experiência encantadora. In: CARVALHO, A. M. P.; CACHAPUZ, A. F.; GIL-PÉREZ, D.
(Orgs.). O ensino das ciências como compromisso científico e social: os caminhos
que percorremos. São Paulo: Cortez, 2012.
PRIGOGINE, I.; STENGERS, I. A nova aliança: metamorfose da ciência. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1984.
SCOTT, R. (dir.). Perdido em Marte. Produção: Ridley Scott et al. [S.l.]: 20th
Century Fox, 2015. 1 DVD (144 min.).
SERRES, M. Júlio Verne: a ciência e o homem contemporâneo. Diálogos com
Jean-Paul Dekiss. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
SERRES, M. Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
SHELLEY, M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. São Paulo: Círculo do Livro,
1973.
TAVARES, B. O que é ficção científica. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.
Recebido: 07 dez. 2017
Aprovado: 08 jul. 2018
DOI: 10.3895/actio.v3n2.7484
Como citar:
FERREIRA, J. C. D.; BARBOSA, R. G. Os discursos nos filmes de ficção científica: ensino de ciências e a
produção de sentidos na perspectiva socioambiental. ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 80-97, mai./ago. 2018.
Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/actio>. Acesso em: XXX
Correspondência:
Prof. Dr. Júlio César David Ferreira
Universidade Federal do Paraná Setor Litoral
Rua Jaguariaíva, n. 512, Caiobá, Matinhos, Paraná, Brasil.
Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.