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http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
O contexto da educação brasileira no ensino
de ciências/química no ensino médio e
superior: entrevista com o professor
Eduardo Fleury Mortimer
The context of brazilian education in
science/chemistry teaching in high school
and college education: interview with
Professor PhD. Eduardo Fleury Mortimer
ACTIO, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 1-14, mai./ago. 2018. Seção Entrevistas.
Marcelo Cesar Ribeiro
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Paraná (SEED), Curitiba, Paraná, Brasil
Marcelo Lambach
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Universidade Tecnológica Federal do
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Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná, Brasil
MORTIMER, Eduardo Fleury membro do Comitê Editorial e árbitro em várias
revistas nacionais e internacionais das áreas de Educação e de Ensino de Ciências.
Fonte: TV UFMG. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F70pOTjwLAs>:
Mortimer_Fleury_2016.jpg. Acesso em: 10 mar. 2019.
PALAVRAS-CHAVE: Mortimer Fleury. Entrevista. Ensino de Química. Ensino de Ciências.
KEYWORDS: Mortimer Fleury. Interview. Chemical education. Science teaching.
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APRESENTAÇÃO
O professor Eduardo Fleury Mortimer atualmente é membro do Comitê
Editorial e árbitro em várias revistas nacionais e internacionais das áreas de
educação e ensino de ciências. Também atua como pesquisador I-A do CNPq, é
assessor da Capes e Fapesp e membro do Conselho Técnico Científico - Educação
Básica, da CAPES. Trabalha também na pesquisa sobre formação de professores,
pois coordena um grupo de formação continuada na UFMG - FoCo - com ampla
tradição em pesquisa, produção de materiais e desenvolvimento profissional de
professores.
Já foi coeditor da Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, no
período de 2001 a 2005, editor coordenador de Química Nova na Escola de 2000 a
2007 e editor de Educação em Revista. Foi também, coordenador do Programa de
Pós-graduação em Educação da UFMG, diretor da Divisão de Ensino da Sociedade
Brasileira de Química, membro do CA do CNPq na área de Educação e Presidente
da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências.
Antes de ingressar na Faculdade de Educação de UFMG em 1983,
especialmente como professor na área de Ensino de Química, trabalhou cerca de
três anos como químico em indústrias e lecionou a disciplina de química no ensino
médio por cinco anos nas escolas de Belo Horizonte. Logo depois de ingressar
como professor da UFMG e fez seu mestrado em educação na própria UFMG, em
que concluiu no ano de 1988. Em 1994 defendeu a sua tese de doutorado na USP,
onde consolidou toda sua brilhante carreira até se aposentar.
O presente artigo tem como objetivo principal discutir e estimular a reflexão
sobre o contexto da educação brasileira no Ensino de Ciências e Química no ensino
médio e superior, a partir da fala do professor Eduardo Fleury Mortimer, que é um
importante e renomado pesquisador no contexto educacional, cuja notoriedade
científica é reconhecida no Brasil, Europa, Estados Unidos, dentre outros países.
A entrevista ocorreu durante o evento “Jornadas de Educação em Ciências e
Matemática”, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Formação Científica,
Educacional e Tecnológica (PPGFCET) no campus de Curitiba da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no dia 23 de novembro de 2017. Naquele
momento, o professor Mortimer falou sobre sua trajetória pessoal e profissional,
realizando uma retrospectiva do cenário da educação no ensino de Ciências e
Química no ensino médio e superior através do contexto pedagógico, e o
entendimento e a descrição desse ensino da química no contexto público nos dias
Contemporâneos.
REFERÊNCIAS
CNPQ. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Currículo Lattes Oficial. Última atualização do currículo em 02/03/2019.
Informações do Próprio Autor.
Programa de Pós-graduação em Educação: conhecimento e inclusão social. O
ensino de estrutura atômica e de ligação química na escola de 2º grau: drama,
tragédia ou comédia? Dissertação de Mestrado. UFMG. 1988.
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USP. Universidade de São Paulo. Evolução do atomismo em sala de aula:
mudança de perfis conceituais. USP. 1994.
MORTIMER. E.F; MACHADO. A.H. Química. Ensino Médio. Editora Scipione. SP.
Vol. 1,2,3. PNLD. 2017.
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ENTREVISTA
Valendo-se do ensejo de ter a presença de vários especialistas em temáticas
múltiplas referente ao ensino de Ciências, o PPGFCET realizou entrevistas com
alguns deles. Dentre eles, estava o professor Mortimer, que de forma educada e
gentil, concedeu uma entrevista de aproximadamente uma hora e trinta minutos
aos autores do presente artigo.
No decorrer do evento o professor Mortimer falou um pouco sobre sua
trajetória pessoal e profissional na área de química, assim como falou e encorajou
uma intensa reflexão sobre o contexto da educação brasileira no Ensino de
Ciências e Química no ensino médio e superior nos dias contemporâneos, como
também as transformações que ocorreram no ensino de química no contexto
público. A entrevista com o professor Mortimer traz reflexões importantes, que
nos remete a momentos difíceis que o professor da educação básica enfrenta
neste momento. Seja por motivos sociais, políticos ou econômicos, o professor
está literalmente fadado ao fracasso se realmente não houver uma mudança
urgente nas políticas públicas educacionais.
GOSTARIA QUE O PROFESSOR FALASSE UM POUCO DA SUA TRAJETÓRIA COMO
EDUCADOR E PESQUISADOR? E O QUE LEVOU À ESCOLHA DA ÁREA DE QUÍMICA
PARA ATUAÇÃO? SERÁ QUE PODEMOS IDENTIFICAR MOTIVADORES
SEMELHANTES EM DISTINTAS GERAÇÕES E EM OUTROS PESQUISADORES DE
REFERÊNCIA PARA O ENSINO DE QUÍMICA?
Falar da minha trajetória como educador e pesquisador é sempre bastante
curioso. Na verdade, eu sou químico desde menino, sempre tive uma fascinação
muito grande pela química. Eu tinha um “laboratórioem casa quando eu tinha
entre 10 e 11 anos, e já aprontava bastante das minhas. Eu me lembro bem de um
episódio bastante interessante na época. Eu havia conseguido ácido sulfúrico
concentrado com meu colega que fazia o ensino médio e então fiz alguns
experimentos, e, como não tinha um laboratório propriamente dito, eu realizava
esses experimentos no pátio de casa. Minha mãe utilizava um expediente de
quarar roupa, colocava os lençóis no sol. Quando ela fez isso, depois de eu ter feito
minhas experiências com o ácido sulfúrico, apareceu cada buraco enorme nos
lençóis, um maior que o outro. Imediatamente ela adivinhou quem tinha feito
tudo aquilo. Ela pegou o meu “laboratório”, que ficava no pátio da minha casa, e
jogou tudo fora. Isso me marcou muito na época.
Na verdade, eu tinha uma atraçãodica pela química, na época a química era
uma coisa de brincadeira para mim. Eu estudei o ginásio no Colégio Aplicação que
hoje é o Centro Pedagógico da UFMG, que ficava perto da FAFICH (Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas). Eu vivi intensamente esse período de repressão da
ditadura militar, período muito difícil. Eu entrei no ginásio em 1967, eu era
adolescente, mas tinha essa influência do que acontecia na FAFICH, porque os
estudantes todo dia faziam manifestação de rua, e de repente, chegava à polícia e
mandava os alunos do colégio para casa. Nós, ao invés de irmos embora, íamos
para a casa de um amigo que morava ali perto, ou seja, a gente assistia tudo de
camarote. Assim, eu acabei vivento esse período de forma muito intensa, o que
acabou me dando uma grande motivação política, o que carrego por toda minha
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trajetória de vida. Quando eu fui para o chamado científico, fomos para um colégio
experimental da própria universidade. Transformaram o Colégio Universitário da
UFMG num outro, chamado Colégio Integrado, com uma disposição bastante
interessante, porque as disciplinas eram oferecidas em três módulos diferentes,
onde, para cada módulo, era obrigatório fazer certa quantidade de crédito, então
você podia compor o currículo como você queria. Por exemplo: eu tinha interesse
em química e fiz todas as disciplinas de química, mas não fazia nenhuma disciplina
de biologia, até mesmo porque eu não gostava de biologia, ou seja, dessa maneira
bastante individual se compunha o currículo de cada aluno.
Em função da reforma do ensino sico, esse colégio durou apenas um ano.
A reforma da universidade determinou que não poderia haver duas unidades com
a mesma finalidade. Já havia o Colégio Técnico, que estava de acordo com a nova
reforma da LDB, pois introduziu o ensino técnico. Desta forma, o Colégio Integrado
acabou. No momento em que fomos para o Colégio Técnico, passei para o Curso
Técnico em Química. Foi neste exato momento que eu passei a estudar
verdadeiramente a química, isso foi em 1972. Acabei concluindo o Curso Técnico
e trabalhei, como técnico em química, na indústria.
Assim, eu fui fazer o curso superior em química. Lembrando que o curso
técnico que eu fiz foi maravilhoso, nível excelente, e no curso superior fiquei
esperando que eu fosse aprender algo de química que fosse suplantar aquilo que
eu havia aprendido no curso técnico, e isso não aconteceu. Um exemplo para
ilustrar o que digo: eu tive dois semestres de química orgânica no colégio, depois,
eu tive quatro semestres de química orgânica no curso superior que não
suplantaram aquilo que eu tive no Colégio Técnico. Isso acabou me dando uma
certa frustração, quer dizer, com o curso e os professores em geral. Foi nesse
momento que eu fui para a Faculdade de Educação, e por um acidente de pura
sorte, eu tive professores muito bons, todos bons. Eu fiz bacharelado e
licenciatura. Na licenciatura eu fui aluno do professor Miguel Arroyo, da saudosa
Agnela Giusta, ou seja, professores que fizeram a minha cabeça enquanto futuro
professor. Foram eles a minha verdadeira inspiração, foi a partir deles que escolhi
a educação orientado por esses professores.
Quando me formei, eu tive a opção de fazer o curso de mestrado em
bioquímica, mas surgiu uma chance de seguir a carreira acadêmica: entrei na
universidade em 1983 como auxiliar de ensino, pois eu tinha apenas a graduação
e, consequentemente, fiz o mestrado e o doutorado em educação lecionando
na universidade. Essa mudança de foco aconteceu devido a todas essas
circunstâncias: na verdade era para eu ser atuante na química dura.” Mas por ter
feito o Colégio Técnico, isso acabou me dando uma base muito boa em química.
Essa base não foi suplantada na universidade em quase nenhuma área. A única
área na qual ela foi suplantada foi à físico-química, físico-química moderna,
química quântica. Mas aí já era tarde.
Assim, eu acabei me fixando na área da educação e naturalmente acabei
fazendo o concurso para a área de ensino de química na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), onde tinha o departamento de metodologia, que é chamado
de Métodos e cnicas de Ensino, onde tinha uma cadeira, chamada de Prática de
Ensino de Química. Assim, como professor do ensino superior, fiz a minha
dissertação de mestrado sobre a história dos livros didáticos de química dedicados
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à Educação Secundária. No doutorado fiz minha tese sobre a noção de Perfil
Conceitual.
No doutorado eu acabei fazendo uma bolsa sanduiche em Leeds, na
Inglaterra. Eu ia toda semana para São Paulo. Ia na terça e voltava na sexta feira.
Eu ficava em um apartamento temporário que a própria USP fornecia para os
estudantes, e isso me permitiu que eu me dedicasse profundamente ao
doutorado. Eu resolvi aproveitar essa bolsa sanduíche para ter contato com
pesquisadores no exterior e principalmente aprender a língua inglesa, que tem um
grande valor, e poder viver em uma outra cultura. Eu acabei indo com minha
família, minha esposa e meus dois filhos que eram pequenos. Fui trabalhar com
Rosalind Driver, uma pesquisadora de grande destaque na área das Concepções
Alternativas. Ela tinha uma publicação de 1978 (com o Jack Easley) que era um
texto seminal na área, chamado Pupils and paradigms: A review of literature
related to concept development in adolescent science students. Tinha também um
livro editado, junto com a Edith Guesne e a Andrée Tiberghien, chamado Children’s
ideas in Science, no qual eram descritas as principais concepções alternativas em
relação a conceitos básicos da ciência, como por exemplo, calor, reações químicas,
força, etc.
Eu acabei me entrosando bastante com todo o grupo. Depois de seminário
meu, no qual apresentei a nascente noção de Perfil Conceitual, eles me chamaram
para confeccionar um paper, no qual eles explicitavam uma transição do
construtivismo individual, que tinha por base as obras de Piaget, para um
construtivismo social, que se baseava em Vigostki. Isso ia ao encontro das minhas
leituras e me deparei com várias novas leituras nessa dimensão. Nessa época lia-
se em Leeds Edwards e Mercer, que são dois autores Ingleses que escreveram
Common Knowledge: the development of understanding in the classroom, que eu
traduziria como “Conhecimento Compartilhado”. Também tinha o Michael Cole
que escreveu com Newman e Griffin um livro chamado The Construction Zone:
working for cognitive change in school, inspirado no conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP) de Vigotski. Tinha ainda o Talking Science, do Jay
Lemke. Esse conjunto acabou abrindo minhas perspectivas, pois eu tinha apenas a
formação Piagetiana, que adquiri ao trabalhar no grupo da Anna Maria Pessoa de
Carvalho, que era minha orientadora no Brasil, uma pessoa excepcional em termos
humanos e de qualidade de trabalho.
Então eu fui pra Inglaterra para terminar um capítulo da minha tese que era
referente à análise do discurso da sala de aula, mas fiz muito mais do que isso. Esse
artigo, para o qual fui convidado, saiu em 1995. Ele é muito citado, tornou-se um
clássico do socioconstrutivismo, e depois eu traduzi para a revista Química Nova
na Escola, e saiu em 1999 como “Construindo conhecimento Científico na sala de
Aula”. O contato com esse grupo de Leeds me abriu as portas para o mundo, pois
a partir desse momento eu passei a ser convidado para eventos na Europa, depois
na Ásia, na África e até nos Estados Unidos. Eu também passei a produzir artigos
em Inglês, minha produção com Leeds foi muito intensa, eu fiz uma parceria com
Philip Scott, que na época ainda não era professor, era apenas assistente de
pesquisa de Rosalind Driver. Philip Scott e eu viramos grandes amigos. Infelizmente
ele se foi em 2011.
Eu acabei escrevendo um livro com ele, que é bastante citado na Europa em
geral, mas principalmente na Inglaterra e nos países escandinavos. Esse livro
ACTIO, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 1-14, mai./ago. 2018. Seção Entrevistas.
inclusive me rendeu um prêmio na Suécia, ele chama-se Meaning Making in
Secondary Science Classroom. Aqui no Brasil teve um artigo que saiu na revista
Investigações no Ensino de Ciências que é mais ou menos um capítulo desse livro,
no qual mostramos a análise de uma sequência de aulas de uma professora inglesa,
analisada usando a estrutura analítica que tínhamos desenvolvido. No livro nós
apresentamos também a análise das aulas de um professor brasileiro. Foi nesse
momento que a minha trajetória acadêmica se firmou. Eu trabalhava, por um lado,
a análise do discurso em sala de aula, que é uma parte importante da minha
trajetória, e, por outro lado, a questão dos Perfis Conceituais, que era meu
campo de pesquisa. Eu orientei algumas teses que buscaram determinar Perfis
Conceituais para diferentes conceitos básicos da ciência. Em 2014 nós fizemos um
livro que saiu pela Springer. Esse livro, chamado Conceptual profiles: a theory of
teaching and learning scientific concepts, consolidou esse programa de pesquisa.
Ele tem muitas novidades: s fizemos um capítulo teórico, um metodológico e
um epistemológico, colocando todas as formulações que fomos desenvolvendo
desde a saída do primeiro artigo sobre perfis conceituais, chamado Conceptual
Change or Conceptual Profile Change?, que apareceu em 1995 na revista Science
& Education. Esse livro reúne os estudos dos meus ex-alunos, e também de uma
ex-aluna do Charbel Niño El-Hani, que é meu parceiro na organização desse livro,
na determinação do perfil de diferentes conceitos: molécula, calor, morte, vida,
adaptação biológica, etc.
Essas duas áreas discurso de sala de aula e perfis conceituais - tiveram uma
grande repercussão, do ponto de vista da minha trajetória acadêmica. Eu diria que
eu construí uma carreira primeiramente buscando ter uma abordagem original, a
abordagem de perfis conceituais. De certa forma eu me inspirei em Bachelard, mas
eu acabei desenvolvendo, com o auxílio dos meus alunos e do Charbel, uma teoria
que vai muito mais além de Bachelard. Hoje, a influência de Bachelard nessa teoria
é muito pequena. Também me aprofundei em Análise do Discurso, uma vez que a
partir de 2010, mais ou menos, começou a ficar evidente que o discurso não era
apenas o discurso verbal, ou seja, você tem que analisar os outros modos de
comunicação que circulam na sala de aula, como gestos, representações gráficas,
modelos, etc. Nós fizemos um aprofundamento nessa área, chamada
multimodalidade, e produzimos vários artigos e agora temos um livro que saiu em
2018 pela Editora UNIJUÍ que chama-se “Multimodalidade no Ensino Superior”,
que é editado por mim e por Ana Luiza de Quadros. A multimodalidade incorpora
uma outra dimensão ao discurso. O discurso não é apenas discurso verbal. Muitas
vezes o aluno não compreende o que o professor está falando em sala de aula mas
para essa compreensão você não pode olhar apenas o discurso verbal, é preciso
olhar o que o professor está fazendo em termos gestual, em termos do uso de
diferentes representações, etc.
Eu acho que tudo isso uma ideia de como foi minha trajetória acadêmica,
e hoje eu estou investigando uma nova dimensão, a epistêmica, do discurso, para
estudar a inclusão e a exclusão do estudante por via dessa dimensão. Faço uma
coisa que tem a ver com a relação de poder em sala de aula, isso também é uma
novidade, pois surgiu a partir de um pós-doutorando que eu supervisionei, Bruno
dos Santos, ele era um especialista em Bernstein e depois eu tive a oportunidade
de conhecer os escritos de Karl Maton sobre Legitimation Code Theory (LCT), que
é uma evolução dos estudos de Bernstein, para caracterizar práticas sociais por
meio dessa teoria dos códigos de legitimação. Hoje eu estou nessa vertente. Mas
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na verdade, a minha trajetória tem unidade, eu sempre estou buscando coisas que
vão reforçar o que eu sei, mas apontado para o que eu ainda não sei, e essa
unidade vai compor tudo isso. Assim, da dimensão interativa do discurso, passei
pela dimensão multimodal e agora estou na dimensão epistêmica.
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA PASSA POR VÁRIAS TRANSFORMAÇÕES EM SEU
ENSINO, COMO O PROFESSOR ENTENDE/DESCREVE O ENSINO DA QUÍMICA
ATUALMENTE NO ENSINO MÉDIO E NO ENSINO SUPERIOR, PRINCIPALMENTE
NO CONTEXTO PÚBLICO?
A Educação Brasileira está eternamente na sua crise. Por que? Você tem duas
questões. Uma delas é a universalização do atendimento. No geral, nesse aspecto,
o Brasil melhorou muito. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso já se vinha
equacionando essa bandeira da escola básica para todos. Após o governo Lula,
algumas políticas públicas se consolidaram e deram oportunidade para os
estudantes das mais diversas origens sociais. Hoje a escola pública atende a grande
maioria dos brasileiros. Tem uma porcentagem que ainda não é atendida, e isso
tem piorado nos últimos anos, principalmente depois do golpe que depôs a Dilma
Roussef. Mas de qualquer forma, esse é um fator importante, porque
democratizou a educação básica.
Mas, ao mesmo tempo que democratizou a educação básica no Brasil,
também contribuiu para que caísse sua qualidade. Caiu porque, no Brasil não tem
investimento para a educação que seja substancial. Isso decorre de vários fatores
como: macroeconomicamente falando, você tem uma distribuição do orçamento
no qual você sempre corta o dinheiro da educação, mas nunca corta os juros da
dívida pública. Os juros da dívida pública correspondem hoje, a mais de 50% do
orçamento geral da União, ou seja, mais de 50% do dinheiro arrecadado serve
apenas para pagar os juros da dívida pública. Esse dinheiro acaba indo para onde?
Isso vai financiar as pessoas que têm dinheiro. Esse é um mecanismo perverso de
concentração de renda.
Tudo isso, acaba tendo uma consequência grande na economia como um
todo: o empresário não tem motivação nenhuma para investir na produção. Um
exemplo: no Brasil tem pouco investimento e desenvolvimento em tecnologia na
indústria, no setor privado. No setor público, agora uma crise, ou seja, estão
cortando também, mas até então existia um certo investimento nessa área. Nos
governos do Lula e no primeiro governo da Dilma houve um crescimento de
investimentos nessa área. Mas, no fundo, a economia sempre foi dominada pelos
mesmos banqueiros, a exemplo de Meirelles, ou seja, ele sempre mandou no
Banco Central, mesmo na época do Lula. Não tem muita diferença, eles sempre
optaram por juros muito altos. Isso faz com que os maiores empresários apliquem
no mercado e não na produção. Se o juro estiver baixo, as pessoas acabariam
aplicando mais na produção.
O Brasil acaba tendo essa questão, que é macroeconômica. Mas tem também
a questão cultural: as empresas privadas não têm muita tradição de investir em
tecnologia. Hoje se abrem algumas possibilidades: incubadoras de empresas em
universidades. Na UFMG, na UNICAMP, etc. Isso é muito importante para a
pesquisa e para a educação superior. Esse governo, que é ilegítimo, ou seja, entrou
por um golpe disso eu não tenho dúvidas, foi um golpe parlamentar acabou
ACTIO, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 1-14, mai./ago. 2018. Seção Entrevistas.
defendendo algumas propostas totalmente absurdas, como a PEC do teto dos
gastos públicos, ou seja, limitou para os próximos 20 anos o aumento dos gastos
públicos na educação, na saúde, etc. Com isso, a educação pública brasileira, que
nunca melhorou em termos de qualidade, vai ser mais penalizada.
Existe um setor que cresceu muito, que são os institutos federais de educação.
Esse setor é parte da educação pública, tem ensino médio e ensino superior de
qualidade, ou seja, trouxe um desenvolvimento muito grande para a educação
brasileira, muita gente empregada, inclusive a nossa área deve muito a esse setor.
Nossa área Educação em Ciências - cresceu muito porque esse setor cresceu. De
certa forma isso acabou sendo uma exceção no quadro geral de educação pública
brasileira. Outra exceção na educação, também no governo Lula, foi o REUNI, que
aumentou o número de vagas nas universidades públicas brasileiras, e multiplicou
o número de campi no Brasil. Hoje você tem em torno de 60 instituições federais,
que espalhados em mais de duzentos campi por todo o Brasil. Se você olha no
mapa e compara o que era antes com o que é agora, é uma coisa extremamente
significativa. Tudo isso é um progresso importante na educação. Além disso, a
interiorização, tanto dos campi das universidades públicas como dos institutos
federais de educação, levou progresso e riqueza para muitas regiões brasileiras
que eram pobres.
que a educação básica, que é aquela educação que é à base da cidadania,
essa nunca foi diretamente atendida. Uma evidencia disso é a deterioração da
infraestrutura das escolas públicas. Vonão tem no Brasil um padrão de escola
pública. Em várias partes do mundo é assim. Na França, por exemplo, existe um
padrão de escola pública, que tem sala ambiente, sala do professor, ou seja, tem
um conjunto de espaços que dá para o professor trabalhar na escola. No Brasil as
escolas de ensino básico, mesmo as da elite, não têm espaço para o professor
trabalhar, planejar aulas, corrigir trabalhos e provas, atender aos alunos. Eu tirei
dados da Inglaterra em uma escola rural, uma cidade de cinco mil habitantes. A
escola era excelente, era a mesma coisa que se você estivesse em Londres. Dessa
maneira, existe muita coisa a ser feito na educação básica brasileira.
Hoje a educação básica em várias partes do mundo é em tempo integral,
principalmente nos países desenvolvidos. Para fazer isso no Brasil, você teria que
aumentar o número de escolas. O salário do professor, que no geral é um
verdadeiro desastre, essas coisas estão associadas: salário do professor, falta de
condição de infraestrutura, falta de condições de trabalho, ausência da dedicação
exclusiva do professor a uma única escola e a falta do ensino integral, essas
condições tiram a qualidade do ensino público no Brasil. O Brasil nunca atacou esse
grande problema da educação pública, mesmo nos governos de esquerda. A
universidade pública no Brasil é de qualidade, isso é reflexo do elitismo que sempre
caracterizou nossa sociedade. Hoje uma mudança nesse quadro, pelo menos
nas universidades públicas, com a implantação do sistema de cotas para o
estudante oriundo das escolas públicas, aumentou a presença dos pobres na
universidade.
Agora, refletindo sobre o ensino superior, este segmento está muito atrasado,
em relação ao que se tem na Europa, nos Estados Unidos e em outros países
desenvolvidos, principalmente em relação ao protagonismo do próprio estudante.
Para o estudante brasileiro, o que é um bom professor? Professor considerado
bom é aquele que “mastiga” tudo para o estudante, deixa tudo claro e fácil para
ACTIO, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 1-14, mai./ago. 2018. Seção Entrevistas.
ele. O programa Ciências sem Fronteiras teve várias falhas, dentre elas, a principal
é você deixar as decisões sobre que universidade cursar na mão do estudante,
enquanto que seria muito mais razoável acoplar o Programa aos pesquisadores das
universidades brasileiras nas diversas áreas e assim permitir uma interação entre
os grupos de pesquisa daqui com os grupos das universidades no exterior. Mas
teve uma vantagem nesse programa, porque expôs o estudante a um tipo de
educação diferente. O estudante chegava lá, escolhia fazer matéria de sessenta
horas, mas apenas dez dessas horas eram presenciais com o professor. As outras
cinquenta horas era de trabalho no laboratório, na biblioteca, junto a pequenos
grupos, etc.
Nessa perspectiva, o estudante acaba tendo um protagonismo muito maior.
Na Europa é assim muito tempo: eu fui para a Inglaterra em 1992 e era
assim. Isso era utilizado naquele país em 1992! O Brasil continua nesse atraso
educacional, isso eu considero extremamente sério. O Brasil tem que mudar esse
perfil educacional, a cada dia que passa nós vamos ficando mais longe dos países
desenvolvidos em vários setores. Por exemplo, na Tecnologia da Informação, que,
na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália e Nova Zelândia, no Japão e agora
também na China, o aluno aprende a programar desde cedo, ele aprende a lidar
com robótica, com coisas práticas, consertar aparelhos elétricos e eletrônicos. Aqui
no Brasil, você praticamente não encontra isso na educação básica, ou quando
encontra é, na maioria das vezes, apenas a elite que utiliza com os seus alunos nas
redes particulares de ensino.
Isso acaba aumentando o fosso que nos separa do mundo desenvolvido. A
consciência do povo brasileiro vai se formando com extrema deficiência frente ao
que os grandes países fazem bastante tempo. Nessa área tecnológica esse
fosso tende a aumentar cada vez mais e se o Brasil não tomar uma providência,
vamos continuar patinando. Seria urgente financiar a educação básica, cumprir as
metas do Plano Nacional da Educação 2014-2024 (todas as 20 metas estão fazendo
água). A educação básica hoje é a chave principal para melhorar a qualidade da
educação no Brasil. Isso melhoraria todo o sistema, e consequentemente, também
o ensino superior. É preciso também romper essa inércia do ensino superior e
tornar o aluno protagonista do seu próprio aprendizado.
NOTA
1- A entrevista foi realizada ainda no governo de Michel Temer.
BIBLIOGRAFIA DO ENTREVISTADO
PRINCIPAIS ARTIGOS, LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS SOBRE O TEMA DA
ENTREVISTA
QUADROS, A. L.; SILVA, A.; MORTIMER, E. F. Relações pedagógicas em aulas de
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Recebido: 23 nov. 2017
Aprovado: 01 dez. 2017
DOI: 10.3895/actio.v4n2. 10214
Como citar:
RIBEIRO, M. C.; LAMBACH, M.; HUSSEIN, F. R. G. S. O contexto da educação brasileira no ensino de
ciências/química no ensino médio e superior: entrevista com o professor Eduardo Fleury Mortimer. ACTIO,
Curitiba, v. 3, n. 2, p. 1-14, mai./ago. 2018. Seção Entrevistas. Disponível em:
<https://periodicos.utfpr.edu.br/actio>. Acesso em: XXX
Correspondência:
Marcelo César Ribeiro
Rua Paulo Setúbal, 5237, Boqueirão, CEP 81750190, Curitiba, Paraná, Brasil.
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