A disputa pelo lixo e a resistência dos catadores em contextos de segregação socioespacial RESUMO Érica Terezinha Vieira de Almeida ericalmeida@uol.com.br Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil O presente trabalho visa a apresentar uma discussão acerca do padrão de desenvolvimento capitalista atual, sustentado na financeirização, e suas consequências do ponto de vista da geração de emprego e da garantia dos direitos sociais universais. Pretende também problematizar o processo de mercantilização da cidade, locus de produção e reprodução da vida social, em detrimento da lógica do “direito à cidade” (LEFEBVRE, 1991). Transformada em um espaço privilegiado de reprodução do valor, as cidades, em especial na periferia do capitalismo, mas não só, vêm realizando um violento processo de segregação socioespacial e racial, violando os direitos fundamentais de uma parcela significativa da classe que vive do trabalho, o que levou Kowarick (1979), ainda na década de 70, a chamá-lo de “espoliação urbana” ao associá-lo ao já conhecido processo de exploração do trabalho. Todavia, esse processo de “acumulação por espoliação” (HARVEY, 2013) vem gerando inúmeras resistências protagonizadas por grupos sociais distintos, que disputam o sentido da cidade e do trabalho. O caso dos catadores de recicláveis do lixão de Campos é uma pequena amostra dessa resistência à transformação da cidade em mercadoria. PALAVRAS-CHAVE: Catadores de Recicláveis. Segregação Socioespacial. Direito ao Trabalho. INTRODUÇÃO Há mais de cinco anos, a Universidade Federal Fluminense / Polo de Campos dos Goytacazes/RJ (sob a Coordenação da professora Érica Almeida, do Departamento de Serviço Social de Campos, a UFF/Campos vem desenvolvendo, desde o ano de 2013 até o momento, projetos de pesquisa e de extensão junto aos catadores do lixão da CODIN. Os projetos de pesquisa contam com o apoio da FAPERJ (Edital Prioridade Rio, nos anos de 2014/2015 e EXTPESQ nos anos de 2015 e 2016) e os projetos de extensão são frutos do Edital MEC/PROEXT nos anos de 2013 e 2014) vem assessorando e apoiando um grupo de catadores do lixão da Codin (o lixão recebeu este nome em virtude da sua transferência, em 1990, para uma área de 160 mil m² cedida pela Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (CODIN) ao município de Campos, no próprio Distrito Industrial), como era conhecido o aterro local, na sua luta pelo direito ao trabalho, após o fechamento do mesmo em junho de 2012. Nesses anos de convivência cotidiana com os catadores, tivemos a oportunidade de não apenas aprofundar a nossa compreensão acerca do seu processo de trabalho na cata de recicláveis no lixão, suas relações, parcerias comerciais, dinâmicas, trajetórias de trabalho, dentre outros, mas, principalmente, estabelecer relações com esses trabalhadores, historicamente estigmatizados e politicamente subalternizados. Enquanto expressão de um padrão de desenvolvimento capitalista sustentado na desigualdade social, na exploração e subalternidade da classe trabalhadora, bem como num crescente processo de segregação socioespacial que vem atendendo, quase que sem exceção, aos interesses do processo de valorização (HARVEY, 2014), o caso dos catadores de materiais recicláveis do lixão da Codin chamou a nossa atenção por diversos fatores, dentre eles a perversa associação entre exploração do trabalho e péssimas condições de reprodução social desses trabalhadores, materializada na ausência e/ou precarização dos direitos sociais fundamentais, o que Kowarick (1979) chamou de “espoliação urbana” e que, atualmente, vem denominando de “vulnerabilidade socioeconômica e civil” (2009), na medida em que ele articula o processo de violação dos direitos sociais a um quadro de crescente vulnerabilidade civil representada pelas ameaças, violências e homicídios cotidianos impostos não só pela guerra do narcotráfico pelo controle do mercado, mas, principalmente, por uma política de Segurança Pública sustentada na violação dos direitos e na criminalização dos grupos subalternos que habitam as favelas e as periferias das cidades. Reconhecidos como trabalhadores “autônomos”, pela ausência de vínculos trabalhistas com os sucateiros (compradores de recicláveis), faz-se necessário problematizar a condição de trabalho dos catadores de recicláveis, tanto nas ruas como nos lixões, e sua ligação com o circuito de valorização do capital por intermédio da reciclagem, em especial a partir dos anos 2000, quando este negócio ganha fôlego e se expande no País (BOSI, 2008; MOTA,2002). Diante disso, o artigo busca analisar, a partir da associação do conceito de segregação socioespacial (MARICATO, 2001) com o de vulnerabilidade socioeconômica e civil (KOWARICK, 2009), uma tentativa de desenvolvermos uma crítica cada vez mais articulada ao processo de reprodução social capitalista, na medida em que este integra o conjunto das desigualdades nos diferentes espaços da vida social. Como nos lembra Lefebvre, a fábrica/empresa não pode ser pensada como o único e principal espaço da contradição e do conflito de classes, pois toda a sociedade torna-se lugar da reprodução das relações sociais, isto é,da vida em sociedade. Todo o espaço ocupado pelo capital transforma-se em “espaço de poder” – a empresa, o mercado, a vida cotidiana, a família, a cidade, a arte, a cultura, a ciência, entre outros, tanto aqueles onde a mais-valia é produzida quanto aqueles em que ela se reparte e é realizada, abrangendo o conjunto do funcionamento da sociedade (LEFEBVRE, 1991). Nesse sentido, procuramos evidenciar, neste artigo, o processo de vulnerabilidade socioeconômica e civil (KOWARICK, 2009), mas, também, as contradições e os conflitos decorrentes desse processo e a construção da resistência pelos catadores de recicláveis, sem perder de vista a sua relação com o processo mais geral de reprodução ampliada do capitalismo contemporâneo, hegemonizado pelo capital financeiro e sustentado pelo poder das grandes corporações e dos fundos de investimento. Destacaremos, também, o processo de construção de uma identidade coletiva (de catadores) e de um sujeito político na luta pelo reconhecimento do direito ao trabalho na cadeia produtiva da reciclagem, demonstrando que a consciência política não se constrói a priori, ela é produto do conflito, portanto, do modo de enfrentamento entre as classes e frações de classe, em um processo crescente de acumulação de experiências e de consciência. Nesse sentido, enfatizaremos a organização dos catadores, suas articulações políticas e manifestações públicas além das negociações com o poder público local como forma de garantir a efetivação da inclusão socioeconômica prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) e no Decreto que a regulamenta (Decreto Lei nº 7.404/2010). Pretende-se, ainda, chamar atenção para o modo autoritário e centralizador de se construir e implementar as políticas públicas locais, sem a participação e o debate com os grupos subalternos envolvidos. No caso da política local de resíduos sólidos, não foi diferente. Embora lembrados pelos governantes locais quando estes se referiam ao encerramento das atividades do lixão, ainda nos anos de1990, os catadores nunca foram ouvidos ou chamados para construir uma alternativa que os incluísse economicamente. As propostas de construção de usinas de triagem com os catadores, seja como cooperados, seja como assalariados, nunca contaram com a participação dos catadores do lixão. Nesse sentido, a resistência recente dos catadores diante do fechamento do lixão, inaugura uma nova fase na condução da política de resíduos sólidos no município na medida em que esta passa a incluir, ainda que pressionada, as propostas oriundas do movimento local de catadores de recicláveis. Cabe lembrar que, ainda que o fechamento dos lixões já aparecesse entre os principais pontos da agenda da Política de Saúde Pública e de Meio Ambiente, desde o início dos anos 90, só a partir da aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), em 2010, é que ele vai se tornar uma obrigatoriedade (segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), somente 58% dos resíduos domésticos têm destinação adequada, ou seja, 2.500.000 t/dia ainda seguem para lixões e aterros controlados) para os municípios brasileiros. Todavia, nem sempre o encerramento dos lixões foi acompanhado por ações de programas de inclusão socioeconômica doscatadores de recicláveis que sobreviviam da catação nos lixões e aterros controlados (segundo o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), são cerca de 1 milhão de catadores de materiais recicláveis no Brasil, nas ruas e nos lixões. Eles são responsáveis por nada menos que 90% dos recicláveis que chegam às indústrias recicladoras brasileiras; todavia, ainda constituem a parcela vulnerável, desprotegida e não paga da rica cadeia de reciclagem. Estima-se que, no ano de 2012, coleta, triagem e processamento de materiais em indústrias recicladoras geraram um faturamento de R$10 bilhões no Brasil e que esse montante tende a crescer (JORNAL DO COMÉRCIO, 2014). Na esteira de Harvey (2013), a reciclagem como negócio e não como política pública de conteúdo socioambiental tem se constituído em uma importante alternativa de expansão das fronteiras do capital em direção à valorização, além da já privatização/mercantilização pelas grandes empresas, da política de limpeza pública adotada em quase todos os municípios brasileiros. Cotados nas principais bolsas de valores, os recicláveis (commodities) têm conseguido preços cada vez mais atraentes, o que vem fazendo com que o percentual de recicláveis aumente na produção total de metais (não ferrosos), de papelão e de plástico, tanto no mercado nacional como no internacional. Considerado um oligopsônio, ou seja, um mercado concentrado em pouquíssimas empresas recicladoras, a cadeia da reciclagem no Brasil apresenta, em sua base, um imenso exército de trabalhadores precarizados e empobrecidos, que comercializam com pequenos e médios sucateiros; estes, também, submetidos aos grandes compradores, que negociam diretamente com as empresas recicladoras, domiciliadas, em sua maioria, no Estado de São Paulo. Como afirma Mota (2002), os catadores são a ponta de uma cadeia (da reciclagem), que tem início nas ruas e nos lixões, corroborando a constatação de que é por intermédio do trabalho precarizado, mal remunerado, perigoso e insalubre dos catadores, que a matéria-prima ou “materia - seconda”, como são tratados os recicláveis, chega às recicladoras, não só no Brasil como também em países latino-americanos, da Ásia e da África. Para Bosi (2008), a expansão da reciclagem como negócio nos países periféricos não se deve a uma política de educação ambiental, mas unicamente à exploração do trabalho dos catadores, isto é: Quando o recolhimento e a separação dos resíduos se mostraram uma tarefa viável e de baixo custo, realizável por trabalhadores cuja remuneração compensasse investimentos de tecnologia para o surgimento (e expansão) do setor de produção de material reciclável (p.104). Além disso, a imbricação cada vez maior entre o formal e o informal no capitalismo contemporâneo demonstra que, no modelo de acumulação flexível, esses dois mundos não só interagem entre si como também se complementam com vistas à realização, em um circuito mais breve possível, do valor. A cadeia da reciclagem é um caso exemplar dessa articulação formal/informal que se espraia por outras cadeias, em uma clara demonstração da ressignificação do que é formal e do que é informal em tempos de reestruturação produtiva e mundialização do capital. A intenção de problematizar o fechamento dos lixões no País não significa ir contra a nova PNRS; ao contrário, implica chamar atenção para as experiências que substituirão os mesmos, considerando o acúmulo de crítica às formas subalternas de participação dos catadores na cadeia e os desafios já anunciados à implementação da nova PNRS (2010), em especial, no que se refere à inclusão socioeconômica dos catadores, timidamente colocadas em prática até o momento (dados de 2014 afirmam que 17% dos municípios brasileiros realizam coleta seletiva, atingindo uma taxa de apenas 13% da população. Concentrada nas Regiões Sul e Sudeste, a coleta seletiva ainda é um desafio para a agenda pública). E ainda, dar visibilidade às propostas apresentadas pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) em defesa dos direitos dos catadores nesta nova etapa da reciclagem no Brasil. A aprovação da nova PNRS (2010) e a pressão do MNCR têm estimulado alguns municípios brasileiros a colocarem em prática políticas públicas de inclusão socioeconômica dos catadores. São experiências de prestação de serviços urbanos ambientais pelas cooperativas e/ou associações de catadores (sobre a discussão acerca do Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos (PSAU) prestados pelas Cooperativas e Associações de Catadores ver: IPEA. Pesquisa sobre pagamento por serviços ambientais urbanos para gestão de resíduos sólidos. Relatório de Pesquisa. DIRUR/IPEA. Brasília/DF, 2010), considerando a primazia dos catadores na prestação de serviços da coleta seletiva nos municípios (ver: Folha de São Paulo. Catadores assumem coleta de lixo reciclável em 50 cidades no país. Caderno Cotidiano, em 23 jun 2014). Essa experiência pode significar uma forma intermediária entre o trabalho precarizado e inseguro dos catadores dos lixões e aquela encaminhada pelo MNCR e nomeada de “reciclagem popular”, cujo principal objetivo é combater a desigualdade nesta cadeia, fazendo com que as organizações autogestionárias (de catadores) ocupem todos os elos do ciclo produtivo, desde a coleta até a industrialização do material reciclável garantindo a gestão integrada dos resíduos. O CONFLITO E A RESISTÊNCIA DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM CAMPOS Nas últimas quatro décadas, a história dos catadores do lixão da Codin, em Campos dos Goytacazes/RJ, pode ser apresentada em quatro fases. A primeira está diretamente relacionada ao processo de expulsão dos trabalhadores rurais vinculados à lavoura da cana-de–açúcar em direção às favelas e áreas periféricas da cidade. Essa fase, que vai do final dos anos 60, início dos anos 70, até a metade dos anos 80, representa o segundo momento do processo de expulsão dos trabalhadores rurais no município, considerando que o primeiro, que teve início nos anos 40 do século passado com as mudanças técnicas no complexo agroindustrial do açúcar, não produziu um êxodo tão significativo quanto este do final dos anos 60, início dos 70. A mecanização da lavoura provocou um forte movimento migratório para as cidades, reforçado, também, pelas mudanças nas relações de trabalho, pela redução das atividades de colonato e parceria, pela perda da moradia e gradativo predomínio e generalização das relações assalariadas (CRUZ, 1987). Segundo Benetti (1986), a formação do trabalhador braçal em Campos é consequência de um processo de desqualificação do trabalhador da lavoura de cana, expulso das fazendas, e que, portanto, deixa de ser responsabilidade dos fazendeiros. Ao radicar-se nas periferias e favelas, essa força de trabalho, mesmo retornando à lavoura de cana de açúcar no período de safra (cada vez menor), na condição de clandestino e de “boia-fria”, constitui, agora, uma força de trabalho barata e disponível, também, para o mercado de trabalho urbano, especialmente, na construção civil, no emprego doméstico e nos serviços de menor qualificação. Em síntese, ocupações marcadas pela subalternidade, pelos baixos salários e pela precarização dos vínculos. As mudanças operadas pelo Estatuto da Terra no que se refere à concessão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais contratados por empresas, neste caso, pela agroindústria sucroalcooleira, já que grande parte dos trabalhadores rurais da Região Norte Fluminense trabalhava nas lavouras das usinas de açúcar e de álcool e não apenas para os fazendeiros fornecedores de cana para as empresas, paradoxalmente, acabou atendendo aos empresários do setor ao transferirem para o próprio trabalhador rural e para o Estado as responsabilidades para com a reprodução da força de trabalho deste segmento, permitindo à fração do capital agrário maior controle sobre o trabalho, expresso não só nos mecanismos de seleção dos trabalhadores pelos empreiteiros ou “gatos”, mas, também, na intensificação da exploração, com a introdução do pagamento por produtividade, isto é, por tonelada cortada. Desse modo, o assalariamento nas lavouras de cana-de-açúcar, como vimos, passou a combinar a superexploração da força de trabalho ao associar introdução de novas tecnologias de produção com extensas jornadas de trabalho e pagamento por produtividade, introduzindo formas perversas de contratação, seleção e pagamento, em uma demonstração inequívoca do poder econômico das oligarquias agrárias e dos seus vínculos com o poder político local. Além do caráter sazonal do mercado de trabalho ligado à produção do açúcar do álcool, a generalização da relação assalariada temporária (o ‘boia-fria’) criou um imenso e desqualificado exército de reserva, acentuando, ainda mais, o processo de favelização na cidade, reproduzindo, no território da cidade, a mesma lógica que preside a exclusão social, econômica, cultural e política - a lógica da desigualdade e da segregação socioespacial e racial (CRUZ, 1987). Além disso, a generalização da figura do “boia-fria”, como trabalhador temporário residente nas favelas urbanas e rurais, expulso da terra e trabalhando em condições precárias e em regime de clandestinidade no vínculo, alternando o trabalho rural com o biscate urbano (CRUZ,1987), criou as condições necessárias para que uma parcela desses trabalhadores pudesse viver da catação de recicláveis no lixão, sobretudo, no período de entressafra da cana que durava em torno de quatro a seis meses. Muitos trabalhadores desempregados e mesmo aqueles desocupados durante a entressafra procuraram o lixão como fonte de renda (ALMEIDA,2014; CRUZ, 1987; JUNCÁ, 2000). A proximidade física com o lixão, ou com catadores que realizavam a coleta de recicláveis no lixão, também concorreu para que muitos catadores viessem a desenvolver essa atividade. No caso dos catadores, a ocupação da Terra Prometida pode ser considerada um exemplo paradigmático da relação entre produção e reprodução da força de trabalho, ou seja, entre a ocupação e o lugar da moradia e, portanto, espaço mais próximo de relações e de realização das suas necessidades fundamentais (terra Prometida é o nome de um assentamento urbano realizado pelo governo municipal de Campos dos Goytacazes, em 1990, como resposta a uma ocupação em uma área privada. Inicialmente pensado para abrigar as 250 famílias que haviam ocupado a tal área, o assentamento, pela sua proximidade com o lixão da CODIN (desde 1988), acabou sendo rejeitado pelas famílias originais e ocupado pelas famílias de catadores do lixão e de outras localidades próximas como estratégia de fugir do aluguel (GOMES et al., 2012). Abandonada pelos moradores originais, que a criticaram, dentre outros motivos, pela sua proximidade com o lixão e com tudo o que o lixão representava de negativo, a Terra Prometida, o primeiro programa de habitação popular em Campos, é ocupada, prioritariamente, por catadores do lixão. Daí a associação histórica desta comunidade com a atividade de catação e com os catadores do lixão. Cabe salientar que a pesquisa realizada pela Universidade Federal Fluminense/UFF, durante a década de 90 (JUNCÁ, 2000), indica que 63,3% dos catadores do lixão residiam na Terra Prometida, 30,6% vinham de outros bairros e 6,1% moravam no próprio lixão. O aumento do aluguel foi apresentado como o principal motivo para as constantes mudanças e ida para a Terra Prometida. Ainda sobre as moradias, a pesquisa informa que 73,5% das casas eram de alvenaria; 24,5% eram constituídas de materiais diversos (madeira, plástico, bambu, papelão) e 2% recorriam à barraca do tipo usado em “camping” na área do lixão. O segundo momento da trajetória dos catadores do lixão é representado pelo recrudescimento da crise econômica em nível nacional, combinando hiperinflação e desemprego com uma total ausência de investimento e incapacidade de dar respostas no campo da proteção social por parte do Estado. Para um conjunto de autores, os anos 1980, também conhecidos como a “década perdida”, só não foram completamente perdidos em virtude das conquistas no plano democrático e da organização popular, com o retorno do Estado de Direito e das liberdades individuais e políticas, cassadas durante os 20 anos de ditadura civil-militar. A combinação da crise nacional com a crise da agroindústria sucroalcooleira local foi decisiva para agravamento do desemprego no campo e na cidade (a concorrência com o Estado de São Paulo, maior produtor de açúcar e de álcool (derivados da cana), e o processo de reestruturação produtiva no setor fez com que dezenas de usinas locais entrassem em processo de falência. Algumas poucas foram vendidas para o capital “de fora”, sobretudo paulista, e outras simplesmente arrendaram suas terras ou as utilizaram como estoque). Este processo, que tem início na metade dos anos 80, vai se estender durante toda a década de 1990, com a liberalização da economia por intermédio da adoção do receituário neoliberal, da reestruturação no mundo do trabalho e da política de ajuste fiscal, promovendo uma drástica redução dos postos de trabalho no País e, por conseguinte, no município. No caso de Campos, embora a grande maioria dos trabalhadores rurais já não residisse mais nas fazendas, o fechamento das usinas provocou um forte desemprego entre os trabalhadores pauperizados e de menor escolaridade. Segundo Cruz (2003): O fim da ditadura e da estrutura política, institucional e financeira que sustentava o fechamento político do Norte Fluminense, o predomínio do capital paulista ao final do ciclo de reestruturação do setor açucareiro, no plano nacional e com presença no Norte Fluminense, juntamente com o capital de outras regiões, na aquisição de usinas, descortinou uma região de população pobre e pouco dinâmica em termos da geração, acesso e distribuição de emprego e renda. A produção de cana e açúcar, ao final da década de 90, realizada, agora, em usinas altamente tecnificadas, passou a ser metade da do auge, nos anos 80 [...]. O emprego no setor caiu, entre meados de 1980 e 2001, de cerca de 50.000 para cerca de 15.000. Foram 35.000 postos de trabalho perdidos e praticamente o mesmo tanto de mão de obra deslocada para o mercado de trabalho urbano, desqualificada, em virtude dos baixos níveis de instrução e de educação formal, e das condições precárias de vida. Concomitante a este processo de “crise” do setor sucroalcooleiro local, o recrudescimento do desemprego e da precarização do trabalho durante toda a década de 90 pressionou os trabalhadores a buscarem alternativas ao desemprego e à insuficiência de renda, muitas delas reconhecidamente “estratégias de sobrevivência”. Neste período de forte recessão e desemprego, o caráter provisório do trabalho no lixão vai se transformando e a atividade de catação vai se consolidando como a única ou principal atividade de rendimento dos adultos que frequentavam o lixão ou, como eles mesmos denominavam. como a principal “saída ao desemprego” (JUNCÁ, 2000). A terceira e penúltima fase dos catadores do lixão de Campos tem início com a chegada dos anos 2000 e é representada pela expansão do negócio da reciclagem no País e em Campos e, por conseguinte, pelas possibilidades de rendimento oportunizadas pela cadeia da reciclagem. Embora o desemprego no País e no município, que levou milhões de trabalhadores a ingressarem na catação de recicláveis, tenha raízes na crise iniciada nos anos 80 e, em especial, nas mudanças no padrão de acumulação do capital em resposta à crise de recessão que afetou o mundo capitalista nos anos 70, não se pode negar a influência da reciclagem como negócio na expansão do mercado de trabalho de catadores no País. Segundo Bosi (2008), além das mudanças introduzidas no mundo do trabalho a partir dos anos 90, a intensificação do mercado de trabalho dos catadores de recicláveis deve ser associada, também, à demanda apresentada pelas empresas recicladoras, considerando o grau de dependência das mesmas com relação ao trabalho dos catadores, fazendo-se necessário relativizar a ideia da catação como um setor marginal e dos catadores como trabalhadores excluídos do circuito de valorização do capital. Em Campos, até a data do fechamento do lixão da Codin, aproximadamente 500 catadores trabalhavam direta e indiretamente na coleta de recicláveis. Além deles, eram mais de duas dezenas de pequenos e médios sucateiros que comercializavam diretamente com os catadores e vendiam para os três grandes compradores do município, todos situados estrategicamente próximos à área do lixão. Tais informações demonstram não só a espacialização dessa atividade econômica em torno do lixão, indicando a sua relevância como “estratégia de sobrevivência” para os catadores, especialmente para aqueles que perderam seu trabalho e que já não viam mais possibilidades de se integrar ao mercado de trabalho, mas, também, para os negociantes locais da reciclagem, sobretudo, para os grandes intermediários que comercializam diretamente com as empresas recicladoras (Klabin, Gerdau, Tetra Pak, dentre outras). Embora os catadores reconhecessem a insalubridade, a precarização e a insegurança como pontos negativos do trabalho de catação no lixão, eles eram superados pela possibilidade de um trabalho que não exigia escolaridade e cuja jornada de trabalho podia ser realizada conforme “a necessidade de cada um”. A proximidade com o local de moradia permitia “aguardar a chegada do caminhão para subir a lixeira” e retornar à casa para os afazeres domésticos ou para pegar e/ou levar as crianças à escola, rotina de quase todas as catadoras. Por mais que a carteira assinada fosse um “sonho para os catadores” (JUNCÁ, 2000), muitos não deixavam o lixão e/ou retornavam quando ficavam desempregados não só pela facilidade de “conseguir um dinheiro”, mas, também, pelas “vantagens” descritas por eles como “achar coisas boas no lixão”, tais como roupas, comidas, bijouterias, coisas para a casa, equipamentos eletroeletrônicos, dentre outros. O rendimento auferido com a venda dos recicláveis aos sucateiros com os quais mantinham relações comerciais, item sempre muito valorizado nas entrevistas com os catadores, variava em função da capacidade de trabalho de cada catador e também do tempo diário dedicado à atividade da catação no lixão. Em média, os catadores recebiam R$40,00 por dia (preço de duas “bombonas” - bombona era o nome dado à sacola com material reciclável vendida para os compradores. As bombonas tinham um preço médio que variavam entre R$ 20,00 e R$25,00, dependendo da qualidade do material. A presença do plástico e do alumínio, por exemplo, faziam aumentar o preço das bombonas. Além disso, os (as) catadores (as) reclamavam da concorrência com os lixeiros e com a coleta seletiva realizada pela empresa concessionária em parceria com uma organização não governamental (ONG), a Sociedade de Apoio à Criança e ao Idoso (Saci). Segundo eles, esta iniciativa fez diminuir a quantidade de material reciclável de melhor qualidade e que tem um maior valor na comercialização com os atravessadores locais) e entre R$200,00 e R$250,00 por semana, ou seja, um rendimento bem acima do salário-mínimo mensal vigente à época, de R$640,00 (ALMEIDA, 2014). Em conversas durante o ano de 2012, antes do fechamento do lixão, os catadores reclamaram muito da redução de 50% no valor da “bombona” nos últimos cinco anos, o que demonstra que, na cadeia da reciclagem, o preço dos recicláveis é imposto de “cima para baixo”, ou seja, inicialmente pelas empresas recicladoras (em função quase sempre do preço internacional, já que são commodities) e, depois, pelos grandes atravessadores/compradores que negociam com as empresas. No que se refere à avaliação dos catadores sobre o seu trabalho no lixão e as vantagens que decorriam dessa atividade, percebemos que esta estava diretamente relacionada ao modo como eles representavam o mercado de trabalho local, no qual poderiam se inserir (construção civil, emprego doméstico, corte de cana e serviços em geral). Nesse sentido, a avaliação positiva da catação no lixão estava diretamente relacionada à baixa qualidade dos postos de trabalho oferecidos pelo mercado de trabalho local, quase sempre precarizados, mal remunerados e subalternos. Um outro aspecto que chama atenção diz respeito aos anos dedicados ao trabalho de catação no lixão. Se, na década de 90, apenas 14,3% dos catadores trabalhavam no lixão há mais de 10 anos (JUNCÁ, 2000), em 2013, esse grupo atingia 61% dos catadores, sendo que 16% trabalhavam há mais de 20 anos demonstrando a continuidade na atividade de catação e, também, a sua relevância e centralidade como fonte de trabalho e renda e não mais como atividade secundária e complementar (ALMEIDA, 2014). Ainda de acordo com Almeida (2014), 53% dos catadores iniciaram a atividade de catação no lixão no final dos anos 90, início dos anos 2000, período em que se deu o incremento da atividade de reciclagem no País e no município, incentivada pela presença do plástico e do alumínio para além do tradicional papelão e vidro, mercadorias de menor valor. Diferente dos catadores dos anos 90 (nos anos 90, quase todos os catadores já tinham exercido uma ocupação antes ou concomitante com a catação no lixão. Dentre elas, destacam-se a lavoura de cana e a pecuária, para 49%, a serventia doméstica, para 37%, e a construção civil, o comércio ambulante, o biscate e a catação em outras localidades, para 14% (JUNCÁ et al., 2000), em 2013, a maioria dos homens (54%) e uma parcela significativa das mulheres (44%) respondeu que sempre exerceu a atividade de catação de recicláveis no lixão, isto é, nunca teve uma ocupação diferente desta, nem mesmo concomitante à mesma (ALMEIDA, 2014). Fazem parte de uma geração que quando criança acompanhava os pais (geralmente as mães) no trabalho de cata no lixão e, portanto, cresceram trabalhando no lixão e lá permaneceram. Quanto aos demais, percebe-se o peso das atividades ligadas à atividade rural, especialmente na lavoura de cana (26%), à construção civil (17%) e aos serviços domésticos (42%), principais ocupações da força de trabalho de baixa renda no mercado de trabalho local. Essas informações nos ajudam a confirmar a tese de Bosi (2008) de que, embora a crise do emprego iniciada nos anos 1980 e agravada na década posterior tenha levado milhões de trabalhadores a buscarem novas alternativas de trabalho e renda, no caso dos catadores, a crise do emprego se associa às demandas da cadeia de reciclagem em expansão. Cabe lembrar que 90% dos recicláveis que chegam às indústrias recicladoras brasileiras são oriundos dos catadores de lixões e de rua. A quarta e última fase da trajetória dos catadores do lixão, pelo menos até o presente momento, refere-se ao processo de organização política dos catadores e abarca o período que vai do anúncio do encerramento das atividades de catação no aterro da Codin até a discussão atual entre as três Cooperativas de Catadores (Reciclar Campos, Cata Sol e Nova Esperança) e o Poder Público local em torno da contratação das cooperativas para a realização da Coleta Seletiva municipal. Como se vê, os últimos quatro anos após o encerramento do lixão (de junho de 2012 a agosto de 2016), com o protagonismo político dos catadores e sua participação nas arenas públicas locais, provocaram mudanças significativas na condução desta política, abrindo espaço para as negociações em torno, principalmente, da Coleta Seletiva. No Brasil, a contratação das cooperativas de catadores pelos municípios, com o apoio da PNRS (2010), tem se constituído em uma importante estratégia de conquista de espaço num campo que vem sendo, tradicionalmente, monopolizado pelas grandes empresas nacionais. Atualmente, estima-se que mais de 200 municípios priorizem a contratação das cooperativas de catadores para tal atividade em detrimento dos grandes oligopólios nacionais. Embora com limites e contradições, a PNRS (2010) tem sido disputada pelo MNCR num movimento político que tem produzido conquistas importantes do ponto de vista da inclusão produtiva dos catadores, sobretudo em um contexto de fechamento de lixões e de ausências de alternativas implementadas pelos municípios. Em Campos, o movimento político dos catadores pode ser compreendido a partir de três momentos: um momento anterior ao fechamento do lixão, representado pelo impacto da notícia que o lixão seria fechado em breve e que apenas 90 catadores seriam aproveitados para trabalharem em uma usina de triagem; um segundo momento que tem início após o fechamento do lixão e que marca as manifestações públicas e a participação política dos catadores nas arenas públicas locais e, também, a participação das lideranças nos espaços de capacitação e de deliberação política do MNCR; e um terceiro e último momento que é fruto dos desdobramentos da participação política dos catadores e da sua vitória na esfera judicial, e que teve como consequência a implementação das cooperativas e o processo de construção do contrato de prestação de serviços na área da coleta seletiva local. Preocupados com a ideia do fim do lixão, mas, ainda trabalhando na catação, os catadores, com a assessoria da UFF e o apoio das lideranças do Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis do estado do Rio de Janeiro (MNCR) (o MNCR, ou Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, é fruto da Marcha Nacional de População de Rua e do 1o Encontro Nacional de Catadores de Papéis, realizado em Brasília/DF em 1999. Sua fundação acontece em junho de 2001com a chamada Carta de Brasília, que congrega os princípios do MNCR. Suas primeiras iniciativas foram a apresentação ao Congresso Nacional de um anteprojeto de lei que regulamenta a profissão de catador de materiais recicláveis e determina que o processo de industrialização (reciclagem) seja desenvolvido, em todo o País, prioritariamente, por empresas sociais de catadores de materiais recicláveis. São conquistas do MNCR a inclusão do catador de material reciclável na CBO (Classificação Brasileira de Ocupação), em 2001, e o conteúdo relativo aos catadores na nova PNRS, de 2010. O MNCR está organizado em quase todos os estados do País e tem uma coordenação colegiada nacional e coordenações estaduais), se organizaram com a finalidade de discutir e negociar com a prefeitura local uma alternativa ao fechamento do lixão que promovesse a inclusão produtiva dos catadores. Entretanto, o aterro foi fechado em meio às negociações pela Empresa Concessionária, que alegou como justificativa as diversas denúncias do Comando da Aeronáutica com relação aos perigos representados pelas aves (urubus) ao tráfego aéreo da região. Com a presença de seguranças armados, a Concessionária retirou os catadores que trabalhavam no aterro e impediu que os demais entrassem para trabalhar no aterro na tarde do dia 16 de junho de 2012. O curioso é que esse fechamento se deu dois anos antes do prazo previsto pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, em agosto de 2014 (aprovada em setembro de 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê não só o fechamento de todos os lixões e aterros controlados em todo o território nacional e sua substituição por aterros sanitários mas, também, um conjunto de medidas que devem acompanhar os aterros, dentre elas, a redução do consumo, o reaproveitamento e a reciclagem dos resíduos e, ainda, a implementação de uma agressiva Política de Coleta Seletiva com a participação dos catadores organizados em associações e cooperativas, em substituição aos monopólios existentes nos serviços de limpeza pública. Embora a nova legislação não tenha conseguido fechar os milhares de lixões ainda existentes no País, graças a um projeto que concedeu mais tempo aos municípios que ainda possuem lixão, ela tem sido um importante instrumento na luta do MNCR (Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis) pela inclusão dos catadores na Coleta Seletiva). Embora os motivos apresentados pela Prefeitura e a Empresa Concessionária fossem o risco à aviação, não podemos desconsiderar duas outras motivações relevantes, mas nem por isso, tornadas públicas nas negociações: o processo de concessão (privatização) tanto do aeroporto local quanto do novo aterro sanitário que substituiria o lixão. Localizado a 10 km de distância do referido aeroporto, o lixão foi acusado, depois de quase 30 anos de existência e de nenhum acidente, de ser um perigo ao tráfego aéreo, agora em expansão em virtude da implantação do Super Porto do Açu, no município vizinho de São João da Barra, também na Região Norte do Estado do Rio de Janeiro. Além do tráfego aéreo, o aterro sanitário que substituiu o lixão e que atualmente é administrado pela Empresa Concessionária (desde o início dos anos 90, o Município de Campos dos Goytacazes privatizou os serviços de limpeza pública, contratando os serviços de uma concessionária, neste caso, a Empresa Vital Engenharia Ambiental, do grupo Queiróz Galvão, um dos cinco maiores grupos nacionais no ramo da limpeza pública, do petróleo e da construção civil. Não se pode deixar de trazer à tona neste artigo o que é sabido no Brasil, isto é, que as concessões de lixo, assim como as de ônibus urbano, dentre outras, representam uma forte receita para os governantes e seu grupo político em suas campanhas eleitorais) já estava pronto desde 2011, aguardando o fechamento do referido aterro e a negociação com os catadores, que se recusaram a aceitar a proposta do governo municipal de incluir apenas 90 catadores na usina de triagem, também gerida pela Concessionária (no momento do fechamento do lixão, havia aproximadamente 500 catadores de recicláveis que vendiam a sua mercadoria para as dezenas de pequenos compradores que comercializavam diretamente com eles no lixão). Além de pressionarem o Executivo municipal, os catadores também acionaram o Ministério Público e a Defensoria Pública exigindo o cumprimento da nova PNRS, com a inclusão de todos os catadores no Programa de Coleta Seletiva. Esta denúncia se transformou em uma Ação Civil Pública (ACP) e teve seu desfecho favorável aos catadores no início do ano de 2015. Em síntese, o governo local se antecipou em quase três anos sem, no entanto, oferecer nenhuma contrapartida aos catadores de recicláveis, do ponto de vista da sua inclusão socioeconômica, como determina a própria PNRS, a não ser a inclusão em programas locais e nacional de transferência de renda e outros programas de assistência social (residuais e temporários) e outros de capacitação profissional, amplamente recusados pelos representantes dos catadores, que a todo momento reafirmavam a sua identidade de catadores de materiais recicláveis e o seu projeto de continuarem como catadores, participando, como propõe a PNRS, na política de coleta seletiva local. Cabe ressaltar que a inclusão em programas de assistência social, sejam eles de transferência de renda ou de capacitação profissional, têm se constituído nas principais respostas do Estado, em suas diferentes instâncias, aos conflitos socioeconômicos e socioambientais, em sua maioria, gerados pelos Grandes Investimentos e que tem acarretado a perda do trabalho e das fontes de rendimentos, como é o caso dos catadores de recicláveis, mas também de pescadores, catadores de mariscos, pequenos agricultores, afetados por barreiras e outros empreendimentos. Segundo Mota (2008), esse padrão de resposta por parte dos Estados liberal-periféricos expressa o abandono do trabalho protegido socialmente como estratégia de integração social na periferia do capitalismo. Como se pode observar, a inclusão precarizada ou Workfare vem se constituindo em uma tendência, seja no Norte ou no Sul, às expressões da questão social contemporânea, expressa na maximização do processo de mercantilização da vida. Em junho de 2015, depois de um ano e quatro meses da assinatura do Termo de Cooperação Técnica, a Prefeitura entrega o primeiro galpão ao grupo de catadores da Reciclar Campos e mais 90t/mês dos resíduos da Coleta Seletiva local. Em setembro do mesmo ano, foi entregue o segundo galpão à Cooperativa Cata Sol e mais 50 t/mês de recicláveis da coleta seletiva (cabe registrar que, desde 1997, o município realiza o programa de coleta seletiva em parceria com a Sociedade de Apoio à Criança e ao Idoso (SACI), entidade vinculada, inicialmente, ao Rotary Club, mas que, com o tempo, passou a comercializar o resíduo da Coleta Seletiva com um grande comprador em troca de cestas básicas e remédios que eram doados às instituições religiosas e de caridade. Mesmo depois do fechamento do lixão, a SACI continuou recebendo os resíduos da Coleta Seletiva. Só após a abertura das cooperativas é que os resíduos deixaram de ser entregues à SACI). Em junho de 2016,pressionados por um grupo de catadores das comunidades Terra Prometida e Vila Industrial que, em virtude da “guerra entre facções” não pôde permanecer em uma das cooperativas e, também, em função de um conjunto de catadores sem ocupação, a Prefeitura entregou o terceiro Galpão à Cooperativa Nova Esperança. Este último funciona exatamente no lugar onde funcionaria a Usina de Triagem da Codin, mas que não chegou a funcionar. A transferência dos resíduos da coleta seletiva para as cooperativas de catadores, sem dúvida, representou uma conquista. Todavia, ainda são muitos os problemas, sobretudo aqueles vinculados à péssima qualidade da coleta seletiva, o que tem prejudicado o ganho das cooperativas. Daí as expectativas dos catadores em torno do contrato de prestação de serviços para a realização da coleta seletiva. As cooperativas acreditam que a substituição da Concessionária por elas com a realização de uma coleta de “porta em porta” com um contato mais direto com os moradores possa melhorar a qualidade dos materiais recicláveis e trazer outras vantagens tanto para as cooperativas quanto para a cidade. O NOVO PADRÃO DE ACUMULAÇÃO: DESIGUALDADES NO MUNDO DO TRABALHO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL A crise de acumulação que emergiu nos anos 70 alterou significativamente o padrão de desenvolvimento do capitalismo mundial, obrigando-o a desenvolver novas estratégias voltadas para o enfrentamento da recessão e da redução das suas taxas de lucro. Dentre as principais alterações, destacamos a nova divisão internacional do trabalho, com a formação dos grandes blocos econômicos, definindo novas atribuições às nações periféricas, a reconcentração da renda, a concentração e a centralização do capital, as alterações no mundo do trabalho, especialmente no que se refere à gestão da força do trabalho e à flexibilização do padrão de proteção social consolidado no pós-Segunda Guerra Mundial, a reordenação da geopolítica mundial, a redefinição das funções dosEstados nacionais e, por último, mas nem por isso menos importante, a financeirização (CHESNAIS, 1996) e desregulamentação do mercado mundial sob o comando do capital financeiro, representado por suas agências “multilaterais” (BIRD, FMI e OMC). Ao contrário do compromisso de classe keynesiano do pós-guerra, a valorização do capital financeiro não depende do pleno emprego e muito menos de um conjunto de direitos sociais. Para Boron (2001), na medida em que subsistam a desregulação, a abertura comercial e a liberalização financeira, o capital monetarizado pode realizar imensos negócios e obter fabulosos lucros mesmo em um contexto econômico caracterizado pela recessão, pela queda dos consumos populares e pelo desemprego em massa. Enquanto a prosperidade do velho capital industrial da época fordista tinha como uma de suas principais condições a existência de um alto peso de consumo de massas, as requeridas pelo capital financeiro se encontram totalmente dissociadas do bem-estar coletivo ou dos consumos populares; daí seu caráter parasitário e predatório (BORON, 2001, p. 54). Cabe ressaltar que o processo de financeirização tem deixado sequelas profundas tanto no centro quanto na periferia do capitalismo no que se refere à redução dos custos com a classe que vive do trabalho. Embora em graus e formas distintas, a economia com a redução de postos de trabalho, com o rebaixamento dos salários e a redução dos direitos trabalhistas vem sendo acompanhada por um violento processo de “espoliação dos direitos sociais” (HARVEY, 2013), em uma clara demonstração da crise do modelo de cidadania universal construído no período de pós- Segunda Guerra e que figurava como referência para os países periféricos. Para Harvey (2013) “a relação orgânica entre reprodução expandida, de um lado, e os processos muitas vezes violentos de espoliação, do outro, tem moldado a geografia histórica do capitalismo. Isso nos ajuda a melhor entender o que é a forma capitalista de imperialismo”. Ainda segundo o autor, a acumulação por espoliação ajuda a resolver o problema da sobreacumulação, já que a mesma permite a liberação de um conjunto de ativos, incluindo o barateamento da força de trabalho para que o “excedente de capital possa apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo” (HARVEY, 2013, p. 118-124). Neste modelo de acumulação por espoliação, o sistema de crédito e o capital financeiro desempenham um papel relevante, comandando o processo de valorização sustentado na superexploração da força de trabalho (o termo superexploração é entendido como a combinação do processo tradicional de exploração da força de trabalho, com a crescente e atual espoliação dos direitos representado pelo projeto do neoliberalismo) e na transferência direta de grandes parcelas da produção para a esfera da especulação. Ao lado da mercantilização da natureza e dos recursos naturais (e sua destruição), avança também o processo de mercantilização dos direitos, com a progressiva privatização dos serviços públicos em áreas até então consideradas como “direitos do cidadão”. Essa espoliação dos direitos vem desconstruindo o que se conheceu como WelfareState (no caso dos países de capitalismo centrais) e, também, os frágeis e deficientes sistema de proteção social construídos na periferia do capitalismo, como é o caso do Brasil, ameaçado pelos interesses do capital especulativo e sua voracidade em conquistar novas fronteiras. No padrão de acumulação atual, as cidades têm se transformado em um locus de valorização do capital, onde os interesses dos capitalistas, em especial, dos fundos imobiliários, vem se realizando, preferencialmente, em detrimento dos interesses comuns ou públicos. Para Maricato (2013), os processos de valorização imobiliária vêm empurrando os trabalhadores mais empobrecidos, cada vez mais, em direção às periferias das periferias, geralmente espaços desertos no que se refere aos serviços e bens coletivos e completamente privados de uma sociabilidade pautada nos direitos fundamentais. Segregados em espaços periféricos compostos por trabalhadores empobrecidos e precarizados e marcados pela ausência e/ou escassez dos bens e serviços públicos e, ainda, afastados das escolas, dos locais de trabalho, dos equipamentos de lazer, de cultura, de serviços de saúde, de infraestrutura, dentre outros, esses espaços têm se transformado em territórios de violência, seja pela ação do tráfico de drogas, seja pela ação da polícia violenta e corrupta. Maricato (2001) afirma também que a industrialização tardia brasileira, baseada no extensivo emprego de mão de obra e no pagamento de baixos salários, foi um dos fatores responsáveis pelopadrãode crescimento periférico dos nossos centros urbanos e que este padrão periférico de urbanização impediu que a população afluindo aos centros urbanos tivesse acesso aos direitos sociais fundamentais. Complementando, Rolnick (2016) anuncia que o processo de valorização que vem se apropriando das cidades tem transformado as políticas de habitação em um setor econômico, mais do que em uma política social. Passa-se a enxergar o setor da produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro, com um papel de destaque para o crédito hipotecário. O mais grave, segundo Rolnick (2016), não é o acesso à habitação via crédito para a casa própria, mas é a expansão do mercado na direção dos mais pobres, metamorfoseando em mercadoria e ativo financeiro algo historicamente definido como política social. CONCLUSÃO Em Campos, como já apresentado, a trajetória dos catadores do lixão expressa a relação entre o processo de urbanização e o movimento de expulsão dos trabalhadores rurais do campo e sua transformação em “força de trabalho livre para o capital” e, consequentemente, a ocupação dos espaços urbanos públicos, “de risco”, de proteção ambiental ou de terrenos mais baratos em função do seu distanciamento dos centros urbanos e, também, da ausência dos serviços e equipamentos públicos coletivos. A inserção subalterna e subordinada ao mercado de trabalho rural-urbano, como afirma Maricato (2001), e a ausência de uma política pública de moradia para esses trabalhadores consolidaram esse processo de ocupação das periferias e favelas além do movimento de autoconstrução. Harvey (2005) nos lembra que o processo de segregação sob a égide do capitalismo corresponde a um amplo leque de práticas de classe que, em associação com a circulação do capital e a reprodução da classe proprietária, implica na necessidade de controlar a força de trabalho, determinando, inclusive, de quais áreas da cidade ela poderia dispor. No caso dos catadores do lixão, é paradigmático. Além de todos os dramas coletivos experimentados pelos grupos subalternos, emerge como preocupação central desses grupos o crescimento dos crimes violentos, em especial, dos homicídios por armas de fogo e o envolvimento dos jovens no tráfico de droga e em contrapartida, a presença de um aparato estatal (a polícia) cada vez mais violento e violador de direitos. Em entrevistas realizadas com os catadores, em 2013, logo após o fechamento do lixão (ALMEIDA,2014), 66% deles responderam que o seu maior medo era “ficar sem trabalho”. Em segundo lugar (para 21% dos catadores), aparecia a preocupação com o “envolvimento dos filhos com o tráfico de drogas”, mercado em expansão naquela região, sobretudo com o encerramento das atividades do lixão. Atualmente, com o acirramento da guerra entre as facções (TCP e ADA) pelo controle dos territórios, os homicídios, prioritariamente contra jovens negros de 18 a 29 anos, aumentaram assustadoramente. Até o início do mês de agosto deste ano, foram 133 pessoas assassinadas nas periferias da cidade, a maioria jovens (REIS, 2016). Recentemente, o Mapa da Violência (2014) apontou que o município assumiu o 3º lugar no que se refere ao shomicídios com armas de fogo contra jovens no Estado do Rio de Janeiro, com uma taxa de 88/100 mil, demonstrando o acirramento dos conflitos decorrentes das disputas territoriais do narcotráfico. Todavia, as respostas no campo das Políticas Públicas ainda são tímidas e orientadas por lógicas, quase sempre, punitivas e ainda mais segregadoras. The dispute of the garbage and the resistance of catadores in socio-social segregation contexts ABSTRACT The present paper aims to present a discussion about the current pattern of capitalist development, based on financialization, and its consequences from the point of view of job creation and the guarantee of universal social rights. It also seeks to problematize the process of commercialization of the city, locus of production and reproduction of social life, to the detriment of the logic of the "right to the city" (LEFEBVRE, 1991). Transformed into a privileged space of value reproduction, cities, especially on the periphery of capitalism, but not only, have been carrying out a violent process of socio-spatial and racial segregation, violating the fundamental rights of a significant portion of the working class, Which led Kowarick (1979), even in the 1970s, to call it "urban sprawl" by associating it with the well-known process of labor exploitation. However, this process of "accumulation by spoliation" (HARVEY, 2013) has generated countless resistances carried out by distinct social groups that dispute the meaning of the city and the work. The case of recyclable waste pickers from Campos is a small sample of this resistance to the transformation of the city into a commodity. KEYWORDS: Recyclable Waste Pickers. Socio-spatial segregation. Right to Work. REFERÊNCIAS ALMEIDA, E. De Catadores de lixo a Catadores de material reciclável – o que muda com a Política de Resíduos Sólidos? Um diagnóstico da trajetória de trabalho dos catadores de material reciclável e do seu protagonismo a partir do fechamento do lixão da CODIN em Campos dos Goytacazes/RJ. Relatório de Pesquisa FAPERJ. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2014. BENETTI, P. Unificação do mercado de trabalho rural/urbano. In: PIQUET, Rosélia (org). Acumulação e pobreza em Campos: uma região em debate. Rio de Janeiro: UFRJ, 1986. p. 48-67. BORON, A.A coruja de minerva. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. BOSI, Antônio de P.A organização capitalista do trabalho informal - o caso dos catadores de recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.23, n.67, p.66-191, jun., 2008.Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2016. BRASIL. PRESIDENCIA DA REPÚBLICA. 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José do Patrocínio, 71 - Centro, Campos dos Goitacazes Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença CreativeCommons-Atribuição 4.0 Internacional.