Um estado sem planejamento urbano e regional: A saga da Fundrem no Estado do Rio de Janeiro RESUMO Robson Santos Dias robsondias.iff@gmail.com Instituto Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. O objetivo deste trabalho é analisar o processo de esvaziamento programático e institucional do planejamento urbano e regional no Estado do Rio de Janeiro após a fusão de 1974. A partir de uma análise histórica do que se denomina de questão regional fluminense, que engloba tanto a problemática metropolitana quanto a disparidade entre a capital e o interior, demonstra-se que, desde a transferência da capital para Brasília, em 1960, falava-se da possibilidade da fusão entre o atual Município do Rio de Janeiro e o antigo Estado do Rio de Janeiro. O principal argumento era que, diante das complementaridades econômicas entre as duas unidades territoriais, a cisão era artificial. Essa ideia foi apropriada durante o Governo Geisel, que, utilizando argumentos geopolíticos e territoriais, visava a fazer da Região Metropolitana do Rio de Janeiro o segundo polo de desenvolvimento do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Aprovada a fusão, construiu-se um arranjo institucional de planejamento urbano e regional, no qual se destacava a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), órgão de planejamento metropolitano. Nos anos posteriores à fusão, entretanto, a FUNDREM foi perdendo prestígio e foi esvaziada até ser extinta em 1989. Tal trajetória não foi casuística, mas o resultado do esgotamento de uma agenda em que a questão regional e, em particular, a questão metropolitana tinham centralidade. PALAVRAS-CHAVE: Governo Estadual. Planejamento Regional. Planejamento Metropolitano. INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo analisar os descaminhos percorridos pelo planejamento urbano e regional no Estado do Rio de Janeiro (ERJ) após a fusão de 1974, tendo como referência a trajetória institucional da Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM). A FUNDREM foi o único órgão estadual cuja função era estudar, planejar e coordenar uma política de caráter regional, no caso, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Sua criação foi consoante a uma conjuntura específica no Brasil e no Rio de Janeiro, em que o planejamento e certa perspectiva espacial eram facetas importantes na agenda governamental. A fusão foi um ato bastante representativo dessa agenda. Em 1o de junho de 1974, foi publicada a Lei Complementar n° 20, que impôs a fusão dos antigos Estados do Rio de Janeiro (ERJ) e da Guanabara (EG), criando, por conseguinte, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), a única entre as grandes cidades brasileiras que não foi incluída na Lei Complementar no 14 de 8 de junho de 1973, a famigerada lei das regiões metropolitanas. Esse ato discricionário marcou a história fluminense recente, já que reuniu dois territórios que, apesar de profundamente ligados pelas relações de contiguidade, distanciaram-se de modo evidente na cultura, na política e nas suas instituições. Tal distanciamento foi o resultado de longo prazo da separação institucional do atual Município do Rio de Janeiro (MRJ) do restante do ERJ, inaugurado pela criação do Município Neutro, em 1834, que foi secundado pelo Distrito Federal, em 1891, e pelo Estado da Guanabara, em 1960. A ideia de fundo dessa cisão era de que a capital deveria ser o espaço da política nacional, separada das querelas provinciais. A cultura da nacionalidade tornou-se, então, marcante na cultura carioca, enquanto que entre os fluminenses o provincianismo continuou a vicejar. Mais do que culturalmente, a força do setor público federal como principal indutor econômico da então capital tornou-se um fator de diferenciação econômica entre o MRJ e o ERJ, principalmente com o advento da República. A cafeicultura, que fora, ao longo do século XIX, a principal responsável pela prosperidade fluminense e carioca, deixara, na entrada do século XX, apenas morros desflorestados e cidades decadentes no interior fluminense, enquanto que a capital, irrigada pela drenagem dos recursos públicos de todo País, conseguia manter uma economia urbana pujante, ainda que estruturalmente perdia dinamismo nos setores que tinham menor ligação com o orçamento público. No entanto, o descolamento da então capital em relação ao seu entorno era apenas relativo. A cidade do Rio de Janeiro continuava sendo o grande polo fluminense, atraindo levas de imigrantes do decadente interior fluminense, além, é claro, de outras partes do País. Em muitos outros aspectos, como no abastecimento de água e energia e, principalmente, nos fluxos da nascente área metropolitana, a capital estava umbilicalmente ligada com a contiguidade do ERJ, ainda que sem partilhar de seus destinos. A decisão pela fusão foi tomada exclusivamente pelo Governo Federal, então sob a presidência de Geisel, que orientado pela visão geopolítica de Golbery Couto e Silva, via que a área metropolitana que se formou entre os dois estados tornava artificial a existência do EG. O projeto governamental, consubstanciado pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), previa consolidar, no Rio de Janeiro, um polo de desenvolvimento, que passaria obrigatoriamente pela criação da RMRJ. A legitimidade da decisão estaria, assim, na necessidade de se configurar uma nova institucionalidade que colocasse sob uma mesma unidade da federação um território que estava artificialmente separado. Seria a atitude mais racional diante tanto das densas relações de contiguidade e complementaridade entre os dois estados quanto das intenções do Governo Federal para a região no âmbito do II PND. Com efeito, no centro da agenda governamental, foi colocada a necessidade do planejamento urbano e regional como método de execução da fusão. Como pano de fundo, havia o auge das teorias espaciais do desenvolvimento econômico de influência francesa e anglófona, que, no Brasil do ciclo militar, se travestiu em uma perspectiva de forte conteúdo tecnocrático. Isso se revelou no II PND e, de maneira mais perceptível ainda, no I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro (I PLAN RIO), que foi o guia para o planejamento governamental do governador colocado por Geisel para executar a fusão, o almirante Floriano Faria Lima. No I PLAN RIO, se delinearam as principais linhas que constituiriam o Sistema Estadual de Planejamento, que, referenciado pelo Governo Federal, organizaria toda a atividade governativa segundo os preceitos do planejamento. Nesse sistema, o planejamento espacial teria uma posição de destaque, na medida em que orientaria todas as ações da fusão no sentido de integrar tanto a região metropolitana quanto o interior fluminense à capital, tendo como desiderato a consolidação do Rio de Janeiro como segundo polo de desenvolvimento econômico do País. No plano institucional, o Sistema Estadual de Planejamento, em tese, seria formado pela articulação dos órgãos da administração direta e indireta sob direção da Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral (SECPLAN). No campo do planejamento urbano e regional, a FUNDREM exerceria um papel central e único de articulação regional, tendo como área de atuação a região metropolitana. Incorporando em sua institucionalidade a agenda do planejamento urbano e regional como horizonte governativo, a trajetória da FUNDREM representa as contradições e conflitos que cercaram essa agenda ao longo dos anos 80, quando, em meio à crise econômica, o planejamento perdeu espaço para outras práticas governativas. O artigo pretende analisar essa trajetória. Para tanto, está estruturado em três partes, afora a introdução e as considerações finais. Na primeira parte, se discute o processo de descolamento do atual município do Rio de Janeiro e o restante do ERJ, assim como as relações de contiguidades que ainda tornaram os cariocas interdependentes dos fluminenses (e vice-versa). Na segunda seção, é realizada a análise de como essa questão legitimou a decisão da fusão e se incorporou à agenda governamental, principalmente por meio da questão metropolitana. Finalmente, na terceira seção, se realiza a análise da trajetória dos arranjos institucionais surgidos a partir da agenda da fusão, tendo como foco a FUNDREM. A ideia é que, por meio da análise da trajetória institucional da FUNDREM, é possível se investigar como evoluiu a agenda do planejamento urbano e regional nos anos posteriores à fusão. A QUESTÃO REGIONAL FLUMINENSE: ENTRE O DESCOLAMENTO CARIOCA E AS RELAÇÕES DE CONTIGUIDADE Para se compreender a problemática que deu origem à fusão de 1974, é necessário fazer-se o resgate dos dilemas que fazem parte da formação territorial do ERJ, que se conceitua neste artigo de questão regional fluminense. De modo sucinto, entende-se a questão regional como o rebatimento no âmbito do Estado, dos conflitos originados pela produção de espaços que se desenvolvem de modo desigual e combinado. A desigualdade é um dos resultados esperados da produção do espaço capitalista, mas para que ela se manifeste, primeiramente, é necessário que haja uma integração das territorialidades em um mesmo mercado e, por meio da generalização de equivalentes gerais (o que é uma condição sinequa non da formação do mercado capitalista), se homogeneízem suas formações sociais à lógica da mercantilização. No Brasil, a questão regional vai tornar-se evidente na década de 1950 por meio da emergência da questão Nordeste. Essa questão surgiu quando os resultados do esforço de industrialização começam a consolidar o mercado interno, acompanhado pela integração territorial tanto pelos fluxos de mercadorias quanto pelos fluxos migratórios. Segundo Wilson Cano (1977), a melhoria do estoque de informações da econômica nacional – que indicavam a concentração econômica no Sudeste –, a influência do modelo do “planejamento para o desenvolvimento” oriundo da CEPAL e o aumento dos fluxos de imigrantes nordestinos para o Sudeste, em virtude das grandes secas da década, colocaram sob evidência o problema das disparidades entre as regiões do Brasil. Além disso, também nesse período, o Nordeste assumia protagonismo político em âmbito nacional devido à emergência das ligas camponesas, que colocavam em questão a concentração de terras nas mãos das oligarquias da região. Apesar do conteúdo das reivindicações possuir um caráter principalmente reformador (COHN, 1978), as tensões geradas pelas ligas camponesas eram consideradas potencialmente perigosas para os status quo não só do latifúndio mas também da burguesia encastelada no Centro Sul (em São Paulo principalmente), que vinha consolidando sua hegemonia na integração do mercado nacional (OLIVEIRA, 1977). Assim, a conjunção da integração do mercado e do território nacionais, que colocaram em outro patamar as disparidades regionais, com a nacionalização de conflitos de origem regional, a questão regional tornou-se uma problemática central para o Estado brasileiro. Sua inserção na agenda governamental alcançou seu auge com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), que, sob os auspícios de Celso Furtado, propôs uma interpretação inédita das causas do atraso do Nordeste (FURTADO, 2009). Devido a esse histórico, a questão regional foi sendo abordada como um problema específico ao Nordeste e sua inserção na divisão regional do trabalho no Brasil. Tornou-se, portanto, uma abordagem clássica do tema. Porém, do ponto de vista conceitual, a questão regional pode e deve ser capaz de abarcar outras realidades e escalas do território nacional. Basta que se identifique um processo de integração do território a partir da lógica do desenvolvimento desigual e combinado e que o fenômeno crie contradições e tensões de natureza política, de modo a tornar-se uma questão na agenda governamental. É sob essa ótica que se pretende afirmar a existência no ERJ de uma questão regional específica. A questão possui uma base empírica, que foi a inserção do ERJ na divisão regional do trabalho no Brasil e seu rebatimento no processo de formação territorial. Ainda hoje, o ERJ se caracteriza por uma das maiores disparidades econômicas entre a capital, sua área metropolitana e o interior. Considerando que o ERJ ocupa tradicionalmente a condição de segunda economia estadual do País, contida em um dos menores territórios, é muito significativo que, até poucos anos atrás, o ERJ possuía uma rede urbana, que concentrava (como ainda concentra) cerca de três quartos da população e do Produto Interno Bruto (PIB) na RMRJ, e que, por outro lado, possuía um número muito restrito de cidades médias no interior (após o advento da economia do petróleo, que se iniciou na década de 1970 e se acelerou em meados da década de 1990, desenvolveram-se novos eixos de crescimento econômico e populacional pelo interior, em especial o eixo que sai da região metropolitana em direção ao norte, onde os impactos do petróleo são mais evidentes, e o eixo em direção ao sul, guiado pela Rodovia Presidente Dutra, que tem recebido significativos investimentos na indústria de transformação (OLIVEIRA, 2003). Por isso, Oliveira e Natal (2007) dizem que, ao se estudar o ERJ, deve-se levar em conta a existência dessas duas formações sociais específicas, ainda que articuladas, ou seja, o atual MRJ e o antigo ERJ, que foram unificados, em 1974, pela Lei Complementar no 20. Pode-se dizer que são formações sociais específicas porque a cidade do Rio de Janeiro, ao assumir a condição de capital, teve um relativo descolamento dos destinos do restante do território fluminense, já que sua economia e sua identidade sociocultural foram atreladas à presença do alto comando da burocracia do Estado brasileiro na cidade. Por outro lado, contando com um território muito pequeno e sendo o principal porto brasileiro por longo tempo, a cidade do Rio de Janeiro mantinha articulações com seu entorno imediato, polarizando os fluxos existentes no território fluminense e dependendo também dos recursos que seu território não dispunha, mas que eram ofertados pelo antigo ERJ. É possível se datar o início do descolamento do MRJ do restante do território fluminense: a criação do Município Neutro em 1834, ainda sob o poder imperial. O objetivo de tal ato era sanear a então capital dos reclamos regionalistas, afinal, “a Corte precisava funcionar em um centro urbano onde não interferissem os elementos regionais, liberta, portanto, de todas aquelas forças que perturbassem a ação do poder central, desviando-o para as competições e paixões puramente locais” (CARDOSO et al, 2010, p. 381). Como espaço da política nacional e pretensamente isolada da perspectiva provinciana, a cidade do Rio de Janeiro tornar-se-ia também o espaço de construção da identidade nacional (MOTTA, 2001). Tais caracteres marcariam, de modo indelével, a cultura política carioca na posteridade. Por outro lado, a antiga Província Fluminense aprofundaria uma cultura regionalista, ainda que privilegiada pela proximidade com o poder instalado nas terras cariocas. Do ponto de vista econômico, o descolamento da capital foi apenas relativo. A criação do Município Neutro se deu num momento em que a cafeicultura fluminense florescia, o que colocava a província na condição de principal economia do Império. Sendo a cidade do Rio de Janeiro o principal porto brasileiro, a maior parte do café produzido pelo interior da província era comercializada nas casas comissárias cariocas, que também tinham importante papel de financiamento dos plantios (MELLO, 1986). Assim, durante as primeiras décadas de Município Neutro, a cafeicultura fluminense ajudou a financiar a riqueza da capital. Segundo Hildete Pereira Melo (1993), ao mesmo tempo em que impulsionou a expansão econômica da província, a capital drenou a riqueza do interior por meio do controle dos preços pela burguesia mercantil carioca e dos artifícios fiscais criados pela cisão institucional. No final do século XIX, a cafeicultura fluminense iniciou sua trajetória de decadência, em virtude da insistência na manutenção de métodos arcaicos de produção, que eram centrados no amplo uso da mão de obra escrava e na exploração predatória do solo. Conforme o eixo da produção cafeeira se deslocava para o oeste de São Paulo, que passou a dirigir os rumos das técnicas e das relações de produção, a cafeicultura fluminense tornou-se marginal. Enquanto em São Paulo o apogeu cafeeiro acumulou capitais que foram fundamentais para a posterior industrialização e o desenvolvimento de uma agricultura forte, no interior fluminense restavam as rugas das antigas fazendas e um conjunto de cidadezinhas que pararam no tempo. O saldo da polarização da capital era altamente negativo. Nas palavras de Lessa (2005): O café criou uma rede de pequenas cidades locais, cuja razão de existência é inteiramente externa à sua vida urbana. [...] É notável o contraste entre o padrão de luxo das sedes das fazendas cafeeiras com a modéstia relativa das residências dos fazendeiros nas cidades locais. Aliás, nesta época, estas sedes superam inclusive as residências no Rio. Somente no último quartel do século XIX os palacetes urbanos no Rio excedem o padrão das fazendas. Sendo a lavoura escravagista, gerou um insignificante varejo nas cidades do interior. O abastecimento das fazendas era concentrado nos atacadistas da praça do Rio de Janeiro. As cidades locais fluminenses não constituíram núcleos comerciais varejistas diversificados, somente possíveis com trabalho assalariado. No interior fluminense não surgiram equivalentes a Ribeirão Preto ou Campinas. O café fluminense escravista gerou lugarejos sem dinamismo, cidades locais débeis que se esvaziaram com o declínio da cafeicultura: as famosas “cidades mortas” do Vale do Paraíba dos Urupês de Monteiro Lobato. (p, 117-118). A cidade do Rio de Janeiro, por outro lado, se descolara dos destinos da província contígua, já que sua economia voltara-se para a demanda efetiva gerada pelo setor público. Após a proclamação da república, com o alvorecer do século XX, agora na condição de Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro iniciaria um período de profundas transformações urbanas, com o fito de abandonar os sinais da ocupação colonial e implantar as marcas da modernização capitalista. Através do processo de expulsão das populações encortiçadas do centro, iniciou-se a era da segregação residencial e a separação entre a cidade moderna dos ricos, no centro e na emergente zona sul, e as precárias áreas de habitação dos trabalhadores, os subúrbios. O notório desvio desse padrão foi a favela (ABREU, 2008). O que importa para os objetivos deste trabalho é chamar atenção para o fato de que no Distrito Federal a concentração de recursos operada pelo Estado permitiu à cidade manter um dinamismo econômico que puxava a economia urbana carioca. O então Distrito Federal fora, durante a primeira metade do século XX, a principal economia e centro industrial do País, ainda que em termos dinâmicos viesse perdendo participação na renda nacional para São Paulo, que já era o motor da integração do mercado interno que se formava com a industrialização (já é conhecido o trabalho de Silva (2004) sobre a perda de participação do Rio de Janeiro na renda nacional e o questionamento da tese do “esvaziamento” econômico fluminense pelo menos até a década de 1980. Em algumas áreas do interior fluminense, no entanto, a tese do esvaziamento desde o fim do ciclo cafeicultor não seria inadequado). Assim, apesar de concretamente haver articulações com o antigo ERJ, principalmente com o crescimento físico da cidade para fora dos limites do Distrito Federal, não havia uma problematização pública sobre as condições do desenvolvimento regional, já que na cidade do Rio de Janeiro não havia problemas de demanda efetiva para sustentar sua economia urbana pujante. Não havia, assim, a questão regional fluminense enquanto problemática política e institucional. Essa agenda começou a se delinear com a construção de Brasília e a transferência da capitalidade (OLIVEIRA e NATAL, 2007). O futuro da cidade do Rio de Janeiro, tão atrelada à história da capitalidade, passa a ser um tema de questionamento na esfera pública carioca. Segundo Motta (2001), três teses se delinearam: a transformação do Distrito Federal em Estado da Guanabara, como previsto pela Constituição de 1946; a fusão com o ERJ, transformando o Distrito Federal em capital do novo estado; e a mudança do status institucional para território federal, mantendo a responsabilidade do Governo Federal na administração da cidade (ao fim, a proposta de fazer da cidade do Rio de Janeiro em território federal perdeu apelo, ficando apenas a proposta da fusão ou a construção da autonomia carioca como Estado). No âmbito desse debate, a contradição entre a articulação da cidade do Rio de Janeiro com o ERJ e seu descolamento tomou uma posição central nas discussões sobre o futuro do Rio de Janeiro. Temas como a formação da área metropolitana, a tendência de esvaziamento econômico da cidade do Rio de Janeiro por falta de espaço para implantação de indústrias e a irredutibilidade das diferenças entre uma capital nacional e um estado provinciano dominaram a pauta. Após a inauguração da nova capital, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se então Estado da Guanabara, assumindo uma condição inédita no Brasil, que era a institucionalidade da cidade-estado. Não havia no EG municípios, então o governo estadual foi beneficiado pela concentração dos recursos tributários de origem municipal e estadual, garantindo uma situação financeira confortável à administração pública. Com efeito, os anos de 1960 foram marcados pela grande capacidade de investimento do EG, que permitiu, principalmente sob Carlos Lacerda (1961-1965) e Negrão de Lima (1965-1970), a execução de várias obras públicas e a constituição de um sistema de planejamento referência no Brasil (SANTOS, 1990). Porém, ainda assim, a proposta da fusão era defendida em alguns importantes círculos empresariais, com destaque para a Federação das Indústrias do Estado da Guanabara (FIEGA), que patrocinou e publicou uma série de estudos que recomendavam a fusão como a medida mais racional diante do processo de “esvaziamento” industrial do EG (FIEGA, 1969). A existência de uma área metropolitana entre os dois estados e uma possível fuga das indústrias em direção ao ERJ (Baixada Fluminense, principalmente), o que induzia um maior crescimento em relação ao EG, seriam os principais motivos para a fusão. Segundo Evangelista (1998), apesar do assunto ainda ser abordado, não havia um movimento político de peso para pressionar a execução da fusão. Foi somente com a firme disposição do Governo Federal sob a presidência de Geisel que, no âmbito de um projeto geopolítico de intervenção na federação, a fusão foi finalmente decidida, por meio da LC no 20 de 1o de junho de 1974. Antes disso, com a promulgação da LC no 14 de 8 de junho de 1973, a lei que criou as oito regiões metropolitanas brasileiras, o que excluía o Rio de Janeiro, teve-se um primeiro indício que alguma intervenção especial seria realizada. No livro de Eros Grau (1974), que discutia a legislação das regiões metropolitanas, o caso fluminense ficou em suspenso. O jurista previa a criação de um órgão federal que administrasse a RMRJ (nas demais, o órgão de planejamento metropolitano deveria ser estadual), que, obviamente, acabou não acontecendo. A lei que instituiu a fusão também criou a RMRJ, delimitando sua área e aplicando os mesmos incisos da lei de 1973. Na exposição de motivos da LC no 20 de 1974, retomou-se o discurso da artificialidade da separação entre o EG e o ERJ, que seriam pertencentes a uma mesma área geoeconômica. Fez-se tábula rasa com o processo de diferenciação gerado pela cisão institucional e considerou-se que, por meio da RMRJ, se consolidaria o segundo polo de desenvolvimento econômico brasileiro. Transformado em município, o EG ajudaria a dinamizar o ERJ, ao mesmo tempo em que este concederia o território que faltava aos cariocas (PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1975). Era uma temática complexa, como é complexa a questão regional fluminense em sua dupla característica, a complementaridade e o descolamento. Ainda hoje, não há grandes questões sobre o quão arbitrária foi a decisão da fusão, que prescindiu da promoção de um amplo debate com a população sobre o tema. Mas é interessante notar que o argumento sobre a racionalidade da fusão diante da problemática metropolitana ainda é muito forte. A fusão foi feita de uma forma absolutamente discricionária e autoritária. Não se discutiu a fusão. Era um tema interessante para ser discutido, mas ela foi decretada autoritariamente. Uma prova eloquente dos mecanismos que caracterizam uma ditadura foi justamente a fusão. Alterou-se a vida de duas unidades da federação de uma forma brutal, sem ao menos consultar seus habitantes. Apesar disso, eu, que fui político pelo antigo ERJ, apesar de ser carioca, vejo que este estado tinha muitas desvantagens gigantescas em relação à Guanabara. Criou-se esse bolsão de pobreza ao redor do Guanabara. Municípios como Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis e, do outro lado da baía, São Gonçalo e Niterói, tinham uma população enorme, de milhões de pessoas, que trabalhavam na Guanabara, geravam PIB e receita estadual, mas que moravam no antigo ERJ, que ficava com a responsabilidade de atender à demanda de moradia, saúde, transporte, educação etc., dessa população. Só que o antigo ERJ não tinha os recursos para atendê-los, porque a receita era gerada na Guanabara. Era uma distorção muito grande que foi gerando essa gigantesca favela que é a Baixada Fluminense. Se não fosse feita a fusão para corrigir isso, eu não sei em que situação estariam os municípios da Baixada Fluminense. A fusão veio a corrigir isso, na medida que a receita gerada por essa população da Baixada veio a ser arrecadada pelo novo estado, possibilitando redistribuir melhor a renda. Ou seja, essa receita poderia, assim, ser aplicada na Baixada Fluminense e de fato foi aplicada lá ao longo do tempo, de modo que a região melhorou substancialmente depois da fusão de 1974. Ainda tem carências enormes, mas melhorou muito em relação ao período anterior. Essa distorção tinha que ser, realmente, corrigida, agora a forma como foi realizada, autoritariamente, que foi errada. Apesar disso, sempre me coloquei a favor da tese da fusão (Saturnino Braga, senador do ERJ na época da fusão. Entrevista concedida em 30 de outubro de 2014. Pude entrevistar algumas outras pessoas que eram contrárias à fusão. Porém todas reconheceram que a existência da área metropolitana impunha dificuldades incontornáveis ao planejamento urbano do EG). A FUSÃO DO ERJ E SUA AGENDA: A CENTRALIDADE DA QUESTÃO REGIONAL FLUMINENSE A fusão do ERJ com o EG fazia parte do plano geopolítico que fundamentava o II PND. Este, que foi o último grande projeto do desenvolvimentismo brasileiro (considera-se aqui que o III PND nunca teve condições reais de se operacionalizar, sendo, portanto, letra morta), tinha como objetivo completar o processo de substituição de importações, mediante a implantação do setor de bens de produção e, por conseguinte, avançar na modernização nacional em poucos anos, de modo a preparar o País para entrar no rol das nações desenvolvidas (BRASIL, 1974). Uma das principais premissas nesse desiderato era, por meio da ação do Estado, desconcentrar a industrialização de São Paulo rumo às áreas periféricas do Brasil, tendo como referência o conceito perrouxiano dos polos de desenvolvimento. A LC no 20 de 8 de junho de 1974 era uma das ações que visavam o equilíbrio federativo, permitindo a criação de novos estados a partir do desmembramento ou fusão de estados mais antigos, e também pela estadualização de territórios federais. A primeira ação nesse sentido, expressa na própria lei foi aplicada ao caso fluminense. Por trás dessa decisão estava o projeto de posicionar, a partir da RMRJ, também criado pela referida lei complementar, o segundo polo de desenvolvimento econômico brasileiro, destinando ao novo ERJ vários investimentos na área de energia e de desenvolvimento tecnológico (por meio da Petrobras e do projeto nuclear, por exemplo). E para executar a importante tarefa da fusão, Geisel nomeou o almirante Floriano Faria Lima como governador da fusão, responsável pela implantação dos projetos e das concepções do II PND no novo estado. Faria Lima seria empossado em 15 de março de 1975, porém, durante o segundo semestre de 1974, já estavam criados diversos grupos de trabalho que se incumbiram de estruturar a institucionalidade do novo ERJ. Tais grupos de trabalho foram o embrião das futuras secretarias, sendo ainda responsáveis pela formulação do plano que orientaria as ações do governo nos anos seguintes, o I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro (I PLAN RIO) (o I PLAN RIO foi oficialmente apresentado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 20 de novembro de 1975, mas suas diretrizes já orientavam a agenda do Governo Faria Lima). As principais instituições e autarquias, inéditas ou renovadas do período anterior, foram formuladas nesses meses preparatórios de modo que, assim que assumiu a cadeira de governador, em março de 1975, Faria Lima pôde publicar inúmeros decretos e leis que reorganizaram a estrutura administrativa do estado e da prefeitura do Rio de Janeiro. O aspecto mais marcante do I PLAN RIO é a centralidade da técnica de planejamento como paradigma para a ação governamental. Sendo dirigida pela renomada geógrafa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Bernardes, o plano foi construído tendo como objetivos centrais a integração dos instrumentos institucionais do governo por meio de uma visão espacializada do planejamento. Por meio desta estratégia, capacita-se de modo mais eficiente a administração estadual a incluir o fator espaço em suas políticas e ações, inclusive quanto à alocação de recursos, a partir de uma conceituação formal e ao mesmo tempo dinâmica da realidade regional, o que lhe permitirá obter maior integração em suas ações setoriais a nível local e regional e assumir, com objetividade, sua responsabilidade na promoção de mecanismos destinados a apoiar o desenvolvimento regional e municipal. [...]. Assim colocada, a estratégia de integração espacial é constituída, essencialmente, por funções de coordenação e articulação fortalecidas pelo caráter de integração que preside toda a estratégia de ação do Governo. Em termos operacionais, ela permitirá, igualmente, a concentração de esforços na solução dos problemas regionais, através da seleção de áreas prioritárias para implantação de projetos integrados. (I PLAN RIO, 1975, p. 112) Essa formulação colocava a temática territorial no centro da agenda governamental. Com vistas disso, Lysia Bernardes coordenou a criação de uma nova regionalização do ERJ, se referenciando nos métodos consagrados no IBGE a partir das teorias da centralidade e da polarização. No I PLAN RIO, previa-se que, através das regiões-programa, houvesse uma descentralização dos investimentos públicos e da burocracia do estado e a adoção, pelas prefeituras do interior, dos modernos paradigmas de planejamento que estavam sendo aplicados na SECPLAN. Outra característica marcante do I PLAN RIO era que se procurou confeccioná-lo como uma versão particular da geopolítica que orientava o II PND. O desiderato da integração espacial após a fusão era uma etapa do projeto de consolidação da RMRJ como o segundo polo de desenvolvimento brasileiro, cujo crescimento seria passível de irradiação para todo o interior fluminense. Assim, do ponto de vista da formulação, a questão regional fluminense foi alçada ao centro da agenda governamental na fusão, o que colocou o planejamento urbano e regional num status elevado na burocracia estadual. Institucionalmente, por força das leis complementares no 14 de junho de 1973 e no 20 de junho de 1974, o planejamento metropolitano foi colocado sob os cuidados da Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), que assumiu atribuições típicas do desenvolvimento regional. Para o interior, não houve uma autarquia do mesmo nível da FUNDREM, com quadros e orçamentos próprios. A função de pensar o planejamento urbano e regional do interior foi dividido entre o Departamento de Desenvolvimento Urbano e Regional (DESUR), seção da SECPLAN, e a Fundação Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio de Janeiro (FIDERJ), que desenvolvia pesquisas e dados setoriais e foi responsável por criar subsídios para o planejamento municipal de todos os municípios do estado, exceto os metropolitanos, que ficaram a cargo da FUNDREM. Assim, a FUNDREM, a FIDERJ e a DESUR (lembrando que a FUNDREM e a FIDERJ eram autarquias e a DESUR um setor da SECPLAN. Assim, a autonomia das duas primeiras seria, em tese, maior) eram os órgãos que representavam o planejamento urbano e regional no sistema estadual de planejamento do ERJ, atendendo a uma agenda que ganhou força com a decisão da fusão. Ao se analisar a história dessa institucionalidade, é possível traçar a trajetória da questão regional fluminense na agenda governamental. A TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL DA FUNDREM E A “MORTE” DE UMA AGENDA Já no nascedouro da institucionalidade criada para o planejamento urbano e regional do ERJ após a fusão, uma contradição se revelou por meio da força que a questão metropolitana tinha na agenda governamental, enquanto que as perspectivas de integração com o interior fluminense caíram numa notória fragilidade institucional. A despeito do discurso amplamente propagado nos documentos oficiais da importância de ações no sentido da interiorização para se garantir o sucesso da fusão, nota-se que foi um tema de início marginalizado do ponto de vista institucional. Por força da própria lei federal, a questão metropolitana foi contemplada pela criação da FUNDREM, que seria responsável pela atividade de planejamento e coordenação das políticas de execução dos serviços comuns, cuja execução estaria a cargo de outros órgãos do estado. Para o interior, no entanto, não existiu nenhum congênere à FUNDREM, apesar da DESUR e da FIDERJ terem iniciado alguns estudos para alicerçar futuras ações no interior. Ainda assim, havia um vácuo entre esses dois órgãos. A DESUR, apesar de ser de fato dedicada ao planejamento urbano e regional, era um departamento menor da SECPLAN, com pouca autonomia para executar ações efetivas de planejamento. Segundo informações de servidores da SECPLAN naqueles anos, o trabalho da DESUR foi resultado do esforço individual da então subsecretária de planejamento, Lysia Bernardes, que contou com a ajuda de alguns outros técnicos da SECPLAN. E a FIDERJ, por outro lado, não tinha as mesmas atribuições da FUNDREM, pois exerceria híbrido papel de órgão de produção de dados, um IBGE fluminense, e de consultoria para os investimentos privados que eram esperados com a fusão. O relato de uma técnica da FUNDREM na época confirma esse fato: Essa preocupação de verificar se tinha um foco com o interior, tinha sim. Mas não era exatamente na FUNDREM, porque a FUNDREM ficava muito voltada para o recorte da região metropolitana. A FIDERJ olhava só para determinados temas, como a indústria e a Secretaria de Planejamento, onde estava a subsecretaria da Lysia (Bernardes) é que olhava para o estado como um todo, tentando fazer a articulação. Mas a menina dos olhos tanto do secretário de planejamento quanto do próprio governador quanto do prefeito do Rio, que na época era o Marcos Tamoyo (Marcos Tamoyo, engenheiro, foi secretário de obras públicas da Guanabara entre 1965 e 1967 e prefeito do Rio de Janeiro entre 1975 e 1979. Contrariamente ao afirmado nessa entrevista, há relatos, como se verá posteriormente, de que na verdade o Marcos Tamoyonão era um entusiasta do planejamento metropolitano), que tinha uma grande influência no próprio desenho da articulação institucional da região metropolitana, era a FUNDREM, sem sombra de dúvida. Ainda era uma época em que se acreditava, realmente, que o crescimento do Estado do Rio de Janeiro em termos econômicos, estava centrado na região metropolitana. A Lysia era um pouco dessa voz dissonante, que acreditava que a gente tinha que começar a pensar numa coisa mais interiorizada, e daí que ela, junto com Lo Russo (Marco Aurélio Lo Russo, economista, foi coordenador de estudos e pesquisas da Vale do Rio Doce, trabalhou na Secretaria de Indústria e Comércio de Minas Gerais, assessor da Direção do BNDE. No Governo Faria Lima, foi subsecretário de planejamento e coordenação geral da Secretaria de Planejamento e posteriormente foi nomeado presidente da FIDERJ) e comigo, fazíamos várias reuniões para pensar o interior, porque partíamos da premissa que não adiantava pensar em uma região fechada. A gente tinha que pensar a região metropolitana em sua relação com os territórios das outras regiões que lhe são pelo menos próximas. Daí que surgiu um pensamento de que a região metropolitana não poderia ser pensada isoladamente, tinha que ser pensada em articulação com essas outras regiões. Mas era um pensamento muito personalista, digamos assim, pois eram a Lysia, a (entrevistada) e o Lo Russo que pensavam que isso era importante. Não tinha nenhum projeto específico sobre isso. Chegamos a fazer palestras, seminários para discutir, porém os prefeitos da região metropolitana não gostavam dessa discussão, diziam “vocês estão indo contra a região metropolitana”. [...]. Só que essa discussão não se traduziu em projetos concretos e objetivos (Entrevista realizada em 5 de dezembro de 2013). Sendo uma preocupação individual de certas pessoas, o desenvolvimento do interior fluminense seria, por isso, um tema isolado do ponto de vista institucional. A própria existência da FIDERJ foi colocada em xeque assim que Faria Lima saiu do governo para dar lugar a Chagas Freitas em 1979. Político da velha cepa do EG, Chagas Freitas e sua equipe ignoravam as problemáticas do interior, de modo que extinguiu a FIDERJ em 16 de junho de 1980, que apesar de não ter sido pensado como órgão de coordenação do planejamento urbano e regional, tinha realizado alguns estudos sobre a economia estadual, incluindo diversos setores que eram importantes no interior. Assim, com o tempo, o órgão que acabou assumindo a identidade do planejamento urbano e regional no sistema estadual de planejamento foi a FUNDREM. Foi criada para atender ao inciso da legislação que previa a existência de um órgão de planejamento metropolitano próprio para cada região metropolitana (segundo a legislação já citada, os órgãos de planejamento metropolitano deveriam assessorar os conselhos deliberativo e consultivo, colégios que reuniam representações municipais e estaduais para discutir a política metropolitana. Alguns órgãos poderiam também exercer funções executivas, o que não foi o caso da FUNDREM na sua origem. O arranjo institucional era completado pelo fundo contábil, que captaria recursos federais e estaduais para financiar a política metropolitana). Apesar da importância da FUNDREM nos primeiros anos após a fusão e da centralidade que a questão metropolitana tem no Rio de Janeiro, o órgão foi pouco estudado desde então. O trabalho mais importante foi a tese de doutorado de Linda Maria Gondim defendida em 1986 na Cornell University, que foi a base de um artigo assinado pela autora publicado em 1991 na Revista de Administração Pública. Outro trabalho sobre a FUNDREM foi publicado no VI Encontro Nacional da ANPUR em 1993, por Ângela Fontes e Valdemar Araújo. E recentemente, o trabalho de Marcos Antônio Santos e outros foi publicado em 2014 na coletânea do IPEA sobre as regiões metropolitanas. Com exceção da tese de Gondim, os outros trabalhos são os mais acessíveis sobre a FUNDREM. O próprio quadro de escassez bibliográfica revela o final dessa trajetória, que se iniciou com o otimismo tecnocrático de Faria Lima e fechou-se sob a obscuridade de Moreira Franco. A FUNDREM existiu enquanto autarquia estadual durante quatro governos: Faria Lima, Chagas Freitas, Brizola e Moreira Franco. Foi extinta em 27 de junho de 1989, merecendo uma nota de pé de página nos jornais da época. Sua história coincide com a trajetória da agenda que legitimou a fusão, e o ocaso dessa agenda significou o esvaziamento não só da FUNDREM mas da própria agenda do planejamento. Com base na literatura supracitada, nos documentos oficiais que restaram – em especial nos planos de governo – e em entrevistas realizadas com servidores que trabalharam na FUNDREM ou em parceria com seus técnicos, pode-se dividir a história da FUNDREM (e da agenda que lhe dava sustentação) em quatro fases: a fase tecnocrática durante o Governo Faria Lima; a fase de transição sob Chagas Freitas; a fase do abandono, com Brizola; e a fase de seu esquecimento no Governo Moreira Franco. A fase tecnocrática seguia a filosofia que fundamentou a fusão, que dominava os escalões federais e foi implantada por Faria Lima na sua missão de fazer acontecer a fusão. Como afirmado alhures, o planejamento operado a partir de certo pragmatismo era o principal método do governo e foi sob esse marco que todo o sistema estadual de planejamento foi estruturado. Pode-se afirmar que o Governo Faria Lima foi uma administração de técnicos. Todos os planos, documentos e projetos eram acompanhados por detalhadas análises técnicas e acadêmicas, que justificavam as razões das respectivas políticas públicas. O Governo Faria Lima foi o período que mais se fez o planejamento regional, não tenho dúvidas de dizer isso. Foi um período muito rico. Mas claro, politicamente era um momento péssimo, já que estávamos em plena ditadura militar. O Faria Lima era militar, mas até por questões particulares, tinha um perfil diferente. Ele resistiu muito, porque via que não tinha perfil para ser governador, mas aceitou. E por isso o seu governo foi conduzido pela equipe técnica, que tinha muito espaço para discussão. Então, do ponto de vista técnico, foi o momento que mais se produziu, e dentro dos princípios que a gente gostaria sempre de trabalhar, porque o Faria Lima facilitava muito isso. Havia o CEDES, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que ele conduzia, mas era muito assessorado. A Lysia Bernardes, que era um furacão em pessoa, assessorava muito o governador, conduzindo muito para essa área dela que era o planejamento territorial. Eu me lembro que até mesmo as decisões de investimento para o estado, como a construção ou melhoria de uma estrada, fazia-se todo um trabalho técnico para provar que aquela obra era necessária, porque a estrada serviria para escoar tal produto. A parte orçamentária era muito bem trabalhada, pois a distribuição de recursos era muito vinculada às necessidades reais e não a fins politiqueiros, para ajudar a tal prefeito... mesmo porque os prefeitos eram nomeados pela ditadura, então não tinha muito isso (entrevista realizada em 4 de novembro de 2014. A entrevistada é geógrafa e servidora de longa data na Secretaria de Planejamento (em suas diversas versões) do ERJ). Na FUNDREM, essa foi a fase de maior produtividade. A FUNDREM comandou vários estudos voltados para o planejamento, dentre os quais se destacavam o projeto de aerofotogrametria da região metropolitana, os planos diretores municipais, o estudo do gerenciamento de resíduos sólidos e, principalmente, o macrozoneamento da região metropolitana. Além disso, atuava no assessoramento ao governador no Conselho Deliberativo da Região Metropolitana. Segundo Gondim (1986), a FUNDREM era um órgão muito forte nessa época, pois além de possuir a legitimidade tecnocrática tão valorizada pelo governo, dispunha, na prática, de razoável capacidade financeira por meio do fundo contábil (em tese, o fundo contábil seria controlado pelo conselho deliberativo, mas como este, durante o Governo Faria Lima, era assessorado pela FUNDREM, ela tinha muita influência na alocação dos recursos do fundo). Com efeito, a FUNDREM possuía vários instrumentos que eram escassos na maioria dos municípios metropolitanos, como quadros técnicos especializados e disponibilidade financeira para patrocinar obras, desde que os municípios se adequassem aos planos elaborados no planejamento da FUNDREM. Então, a princípio, a força da FUNDREM derivava da fraqueza dos municípios metropolitanos. O município que dispunha de força econômica própria, como no caso do Rio de Janeiro, a relação com a FUNDREM era mais de conflito do que de cooperação. Havia uma interpretação do prefeito (do Rio de Janeiro), e ele passava isso para seus subordinados, que a atuação do estado através da política metropolitana poderia ferir a autonomia municipal (trata-se do prefeito Marcos Tamoyo, que em entrevista citada anteriormente era colocado como um entusiasta da FUNDREM. Aqui se coloca uma visão diferente, a de que o Tamoyo era, na verdade, um opositor da política metropolitana). Ele achava que um planejamento metropolitano qualquer iria ferir a autonomia municipal, então ele achava que não se devia atender a esse planejamento. Tanto que a prefeitura quase não usou recurso do FUNDES, preferindo atuar sobre outras bases. Eu participei da elaboração de um plano de ações imediatas para angariar empréstimos na Caixa Econômica Federal, o que foi de fato feito. Então, começou-se a buscar recursos em outros órgãos ao invés do FUNDES. Politicamente, a região metropolitana entrou numa hierarquia de esferas de governo, entre a estadual e a municipal. Ficou difícil alcançar um entendimento político sobre o que significaria essa entidade no meio entre o estado e o município. Os municípios da Baixada, no entanto, se adaptavam ao planejamento metropolitano para poderem receber os recursos para executar obras. Já a Prefeitura do Rio achava que tinha que ter autonomia total nisso (entrevista realizada em 21 de outubro de 2014 com um arquiteto que trabalhou no Estado da Guanabara e, após a fusão, na FUNDREM). Em 1979, se findou o governo da fusão e retornou ao poder Chagas Freitas, que fora o último governador do EG. Chagas Freitas se notabilizou pela paciente construção de uma máquina de clientela que lhe garantiu a hegemonia no colégio eleitoral da Guanabara (SARMENTO, 2008) e que, após a fusão, foi ampliada para o novo ERJ. No seu governo, a conjuntura nacional entrara numa nova fase, com o esgotamento do desenvolvimentismo do II PND e o início da crise que adentrou na década de 1980. Mas também, a filosofia de governo era distinta de seu antecessor, substituindo o critério tecnocrático pela lógica clientelística na ocupação de postos-chave do sistema estadual de planejamento. Ainda assim, Chagas Freitas manteve o perfil profissional das nomeações, mas centralizou as principais decisões ao seu crivo (GONDIM, 1986). Logo no primeiro ano de seu governo, foram executadas algumas alterações no setor de planejamento. Sob a justificativa de tornar mais eficiente a máquina pública, Chagas Freitas extinguiu a FIDERJ, em 16 de junho de 1980, e criou em seu lugar o Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), que reuniria a função da FIDERJ mais a função de financiar a ciência e tecnologia produzida no estado. Quanto à FUNDREM, operaram-se algumas importantes mudanças. A principal mudança se deu nas suas atribuições, que passaram a incluir a possibilidade da FUNDREM operar também como órgão executor de obras públicas, o que era vedado no seu primeiro estatuto, que previa sua atuação apenas na área de estudos e planejamento. Derivada dessa mudança, se processou uma reestruturação organizacional da FUNDREM, que passou a contar com uma diretoria de obras públicas e também uma diretoria de planejamento metropolitano, cujo escopo era atender aos serviços comuns. A mudança de foco da FUNDREM reflete o novo modus operandi, em que houve a perda de espaço da agenda tecnocrática, que pensava o planejamento metropolitano como uma ciência e o retorno da agenda clientelística. A FUNDREM estava preparada para atender às demandas dos “picadinhos” das lideranças políticas chaguista, principalmente na Baixada Fluminense, onde Chagas Freitas buscava ampliar sua base eleitoral. Tais mudanças geraram significados diferentes. Alguns servidores entendiam que tais mudanças foram o upgrade na atuação da FUNDREM. Em termos de região metropolitana, o Governo Faria Lima pegou o I PLAN RIO e fez o que dava para fazer, mas não fez tanta coisa assim. Se o Lerner (Jayme Lerner, ex-prefeito de Curitiba, foi convidado para presidir a FUNDREM na época da sua fundação. Devido a conflitos com outros membros do governo do estado e da prefeitura, exonerou-se após poucos meses como presidente) tivesse continuado, pelo espírito dele, poderia ter sido diferente em termos de execução. O Faria Lima fez muitas operações, como a construção do metrô e mesmo para o Município do Rio de Janeiro, através dos recursos do Fundo Contábil. As decisões eram muito fechadas: assinavam ele, o presidente da FUNDREM, que era na prática o seu assessor nessa área, e três representantes dos municípios. Ou seja, a FUNDREM não participava tanto assim em termos de execução de projetos, de obras. Atuou muito pouco nesse sentido. Em termos de urbanismo, a FUNDREM fez, em alguns municípios apenas, um plano diretor nos moldes da SERFHAU (Serviço Federal de Habitação e Urbanismo), que eram feitos para o prefeito pegar aquilo e em alguns meses executar. Mas os prefeitos não tinham quadros para desenvolver aquilo, então rapidamente os planos viravam letra morta, ficavam de lado e os prefeitos faziam suas coisas. (...) No Chagas Freitas, a FUNDREM passou a ser um órgão realmente de coordenação. O Faria Lima usou muito o Fundo Contábil para pegar recursos para o metrô, para o DER, entre outros (entrevista realizada em 21 de outubro de 2014). Outros entendem que a FUNDREM, sob Chagas Freitas, na verdade descaracterizou seu papel coordenador da politica metropolitana. No Governo Chagas Freitas […] as ações eram politiqueiras. Não eram políticas, eram politiqueiras, interessadas no retorno eleitoral. Continuava a história do feudo. Quando terminava uma obra, alguém sempre solicitava um palanque para inaugurar, colocar certas pessoas, aquela discussão barata, de Jorge Leite (nascido no Rio de Janeiro em 1930, era advogado. Foi subchefe da Casa Civil de Chagas Freitas no Estado da Guanabara entre 1966 e 1969. Foi deputado estadual, entre 1970 e 1982 e entre 1991 e 1993, quando assumiu a Secretaria Estadual de Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia no Governo Leonel Brizola. Em 1981 e 1982, foi presidente da ALERJ e, em 1986, elegeu-se deputado federal) e outros políticos da época. Não havia uma política integrada. No Governo Faria Lima, foram criados os órgãos, eram discutidas as interfaces, havia propostas, havia uma visão do que iria acontecer, mas não teve continuidade. No Chagas Freitas, o objetivo era fazer barulho. Era fácil pois havia dinheiro. O BNH na época tinha muito dinheiro ainda. Mas deixou de haver planejamento integrado. Mas, pelo menos, a FUNDREM tinha facilidade para fazer os investimentos (entrevista realizada em 13 de outubro de 2014 com um engenheiro que participou dos grupos de trabalho da fusão e presidiu a Companhia de Habitação do Estado do Rio de Janeiro). Assim, é possível se considerar o período do Governo Chagas Freitas como uma transição, quando a questão metropolitana (que é uma parte da questão regional fluminense) e o planejamento urbano e regional continuaram fazendo parte da agenda governamental, porém sem a mesma centralidade do Governo Faria Lima. Essa transição foi resultado das mudanças na correlação de forças que orientavam a agenda. O tecnocratismo foi perdendo substância enquanto as forças políticas fluminenses se acomodavam às mudanças na conjuntura local e nacional. A ruptura se deu sob o Governo Brizola, que se iniciou em 1983, após concorrida e histórica eleição direta para governador. A própria vitória de Brizola foi um sinal dos tempos. O político fora um dos nomes que os militares mais resistiram em anistiar em 1979 (SENTO SÉ, 1997), dado o histórico de proximidade de Brizola com o legado do trabalhismo varguista e de suas antigas intenções em enfrentar o golpe de 1964. Após seu retorno, fundou um novo partido (Partido Democrático Trabalhista) e inicia uma bem sucedida campanha de corpo a corpo para se eleger no pleito de 1982. A posse de Brizola representou um importante rearranjo nas forças políticas locais. O período se caracterizou pelo agravamento das condições governativas do ERJ, em consequência da crise econômica que assolava o País e que tinha rebatimentos particularmente graves no estado. Somado a isso, havia a desconfiança do Governo Federal com Brizola e deste com tudo que considerava herança dos militares. Dentre essas heranças, estava o paradigma tecnocrático de planejamento, que Brizola considerava autoritário e antipopular. Durante o Governo Brizola, o paradigma que estruturou o sistema estadual de planejamento foi abandonado, sendo substituído por uma estratégia governativa voltada para programas especiais de cunho setorial, que mobilizaram quase todo o esforço do governo. Nessa nova perspectiva, não fazia sentido a burocratização da administração pública, que passou a servir a tais programas de acordo com os interesses governamentais. Em órgãos como a FUNDREM, que possuíam uma forte identidade programática, que no caso era no campo de planejamento urbano e regional, a nova filosofia representou o fim de sua funcionalidade primaz, em benefício de uma agenda que era setorial. Qual era o conceito? O sujeito era servidor público! Por acaso era metroviário, por acaso era da FUNDREM ou da FAPERJ. Então, se para o interesse público era conveniente que ocorresse uma movimentação horizontal, você vai compondo. No metrô, por exemplo, havia um grupo de estatísticos da melhor qualidade. Assim, trouxemos gente de lá. E a FUNDREM também tinha, só que a percepção dos servidores da FUNDREM foi de esvaziamento. Eles não compravam essa ideia de que houvesse uma superestrutura racionalizadora e ordenadora que fazia o controle. [...]. Do ponto de vista de investir nos recursos humanos com vistas a esse planejamento governamental, com vistas a fazer pequenos trabalhos, que estiveram tradicionalmente na mão da FUNDREM, com vistas a trazer técnicos para o governo, a FUNDREM acabou sendo uma provedora de mão de obra sem muita função no governo. Isso não quer dizer que se matou o órgão, pois às vezes, no governo, a criatividade é muito importante, e muita coisa nasceu ali (entrevista realizada em 17 de março de 2015 com o ex-secretário de planejamento no final do Governo Brizola. Foi também professor universitário). Várias instituições construídas pela agenda da fusão eram consideradas obsoletas, caso das regiões-programa, que foram abandonadas como referência espacial do governo, que passou a defender a articulação direta entre o governo estadual e as prefeituras. A própria FUNDREM passou a ser uma obsolescência. Em 11 de maio de 1984, suas funções foram transferidas para a Secretaria de Desenvolvimento da Região Metropolitana (SECDREM), que subordinou a FUNDREM à sua pasta. Na prática, a FUNDREM saiu da pasta do planejamento e tornou-se um órgão sem função específica. Como foi expresso na citação acima, ela passou a ser uma mera fornecedora de pessoal especializado para outros órgãos do Estado, enquanto que nos seus próprios quadros foram nomeadas pessoas que não possuíam o perfil profissional que caracterizava a FUNDREM. Assim, a partir de Brizola, tanto por falta de condições objetivas para a realização do planejamento devido às instabilidades econômicas que assolavam o Brasil e o estado quanto por filosofia de governo, o planejamento como um todo e em particular o planejamento urbano e regional foram abandonados em benefício de uma perspectiva imediatista e setorialista de governo. Tal situação foi agravada durante o Governo Moreira Franco. Este, herdeiro da velha oligarquia política liderada por Amaral Peixoto, teve um governo que é considerado dos mais desastrosos do ERJ após a fusão. Não conseguiu nem reconstruir o sistema estadual de planejamento, como prometera em seu plano de governo, nem construir uma agenda de ações prioritárias como fez Brizola. Com efeito, o que de notável se observou de seu governo foi o desmonte final das políticas públicas realizadas até aquele momento. Uma das vítimas desse processo foi a FUNDREM, que, em 27 de junho de 1989, foi extinta e seu espólio distribuído pelos arquivos mortos do estado. A situação da FUNDREM era muito precária. O Governo Moreira Franco manteve o órgão sem função, mantendo sua subordinação à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Regional (SEDUR), sucedânea da SECDREM, logo afastada de seu berço original. Desde Brizola, as informações sobre a FUNDREM desapareceram em documentos oficiais e mesmo na imprensa. As últimas informações que são encontradas referem-se a casos de corrupção que expuseram a FUNDREM nas páginas policiais e que obrigaram o Governo Moreira Franco a realizar mudanças no órgão (ver na edição do Jornal do Brasil em 14 de junho de 1988). O resultado foi sua extinção meses depois. Mas tal decisão foi apenas formal, pois a FUNDREM já estava completamente abandonada há tempos. Isso se refletiu na própria localização do órgão na cidade. O processo de extinção da FUNDREM durante os governos Brizola e Moreira Franco pode ser observado na própria localização da entidade. Ela ficava alojada no Palácio da Guanabara, no terceiro andar do prédio anexo. Aquele prédio, que hoje abriga a Casa Civil, é um símbolo, porque foi construído para a Secretaria de Planejamento do Estado da Guanabara, ainda no Governo Negrão de Lima. Simbolizou, portanto, o planejamento, porque foi construído para abrigá-lo. Quando veio a fusão, o Faria Lima consolidou a divisão do prédio: a FIDERJ no segundo andar, a FUNDREM no terceiro andar, no quarto andar a subsecretaria de orçamento, no quinto e sexto andares a SECPLAN propriamente dita. Com o Chagas Freitas já começou a misturar, pois ele começou a levar outros órgãos para o prédio, gerando problemas de espaço. Foi ficando apertado e iniciou-se o deslocamento dos antigos órgãos, até que, quando o Moreira Franco entrou, a FUNDREM estava no convento na Praça Afonso Pena, na Tijuca. [...]. A FUNDREM foi literalmente despejada, indo parar no convento próximo à Praça Afonso Pena. Nesse momento muita gente migrou, alguns inclusive vindo trabalhar comigo (na SECPLAN), porque não aguentavam trabalhar no convento. Isso porque não tinha mais nada, era uma coisa deprimente (entrevista realizada em 4 de novembro de 2014). E de órgão com respeitados quadros técnicos, a FUNDREM tornara-se um lugar indesejado para quem queria crescer profissionalmente. O Governo Moreira Franco criou a SEDUR, à qual a FUNDREM era ligada, e de que Maurício Nogueira foi diretor. Como eu disse, o Moreira Franco começou com algumas ideias, mas depois caiu numa decadência total. A própria SEDUR não conseguiu manter a FUNDREM. O fato era que fisicamente a FUNDREM na época da sua extinção já estava completamente alijada, esquecida no convento, sendo que seus melhores técnicos já haviam providenciado sua saída há muito tempo. Uma arquiteta que trabalhou comigo e era um excelente quadro, quando começou o desmonte saiu do estado. Disse que não queria mais. E isso ocorreu com vários técnicos. Foi a desintegração total daquela equipe técnica da FUNDREM. E quem ficou não tinha mais condições para trabalhar. [...] Quando a FUNDREM foi extinta, a verdade é que ninguém ia mais lá. Ela foi acabando mesmo, de modo muito triste. E os técnicos foram abandonando. Porque quem era profissional e queria trabalhar, queria crescer profissionalmente, pedia para sair da FUNDREM. Um secretário ou outro fazia a requisição e eles saíam, porque a FUNDREM não tinha nem a força, nem a moral para negar (entrevista realizada em 4 de novembro de 2014). A extinção da FUNDREM representou o ocaso da agenda que legitimou a complicada decisão de fundir o ERJ e o EG. A questão regional fluminense e, em particular, a questão metropolitana deixaram de ser um tema decisivo para a agenda governamental, ainda que aqui e ali voltem a ser mencionadas. Essa agenda foi a grande responsável pela construção institucional de todo um sistema de planejamento urbano e regional, que, bem ou mal, revelavam a relevância da temática para a administração pública. A implosão da agenda e sua institucionalidade demonstraram, ao contrário, que no ERJ a reflexão sobre seu território e a promoção de políticas públicas que combatam as desigualdades espaciais são prescindíveis ao governo. CONSIDERAÇÕES FINAIS É notória no ERJ atual a fragilidade de suas instituições de planejamento urbano e regional, a despeito de contar com a segunda mais populosa área metropolitana brasileira e disparidades territoriais dos níveis de desenvolvimento bastante agudas. Somente nos anos recentes, tem-se recolocado no debate público a necessidade de um olhar territorial para o enfrentamento de alguns dos dilemas fluminenses, com destaque para o esforço em refazer a política metropolitana mediante a Câmara Metropolitana de Integração Governamental do Rio de Janeiro. Tal quadro é mais espantoso quando se leva em conta o fato de que a questão regional e metropolitana foram os grandes legitimadores da fusão em 1974. Na época, se considerava artificial a manutenção da cisão entre o EG e o ERJ dada a existência da área metropolitana e da necessidade de facilitar a integração entre os dois estados. Demonstrou-se, por meio deste trabalho, como essa agenda que legitimou a fusão se descontruiu nos anos seguintes, refletindo nos arranjos institucionais criados em 1975. No caso do planejamento urbano e regional, a principal instituição criada foi a FUNDREM, que sintetizaria a problemática metropolitana como questão na esfera governamental. Em seus primeiros anos, a FUNDREM manteve sua legitimidade segundo o viés tecnocrático, que pretendia passar por cima das querelas políticas fluminenses e cariocas. Porém essa legitimidade foi perdendo substância conforme a eficiência tecnocrática foi perdendo apelo na burocracia estadual. Para a FUNDREM, isso se revelou com o início do esvaziamento com Chagas Freitas, quando a entidade começa a se descaracterizar como órgão técnico e passa a assumir funções executivas, e se concretizou com o abandono da FUNDREM pelos governos Brizola e Moreira Franco. O processo de esvaziamento e extinção da FUNDREM representou mais do que uma simples reorganização do aparato governamental com fins de melhoria da eficiência. Foi o fim de uma agenda importante para o estado, que posteriormente nunca mais construiu um sistema de planejamento urbano e regional digno desse nome. Isso apesar de ser o segundo estado mais rico do País. Como sempre se caracterizou ao longo da história, o Rio é um laboratório e uma síntese dos problemas que se manifestam no Brasil. E no caso do planejamento urbano e regional, foi um dos primeiros a manifestar o ocaso dessa agenda nas políticas públicas. A state without urban and regional planning: The Fundrem saga in the state of Rio de Janeiro ABSTRACT The objective of this work is to analyze the process of programmatic and institutional emptying of urban and regional planning in the State of Rio de Janeiro after the merger of 1974. Based on a historical analysis of what is called a regional issue in Rio de Janeiro, encompassing both the problematic Metropolitan area as to the disparity between the capital and the interior, it is shown that since the transfer of the capital to Brasilia in 1960, it was said that the merger between the current Municipality of Rio de Janeiro and the former State of Rio de Janeiro . The main argument was that, given the economic complementarities between the two territorial units, the split was artificial. This idea was appropriated during the Geisel Government, which, using geopolitical and territorial arguments, aimed to make the Metropolitan Region of Rio de Janeiro the second pole of development of the Second National Development Plan (PND). After the merger was approved, an institutional arrangement was established for urban and regional planning, in which the Foundation for the Development of the Metropolitan Region of Rio de Janeiro (FUNDREM), a metropolitan planning body, was highlighted. In the years following the merger, however, FUNDREM lost its prestige and was emptied until it was abolished in 1989. This trajectory was not casuistic, but the result of the exhaustion of an agenda in which the regional question, and in particular the metropolitan question, had Centrality. KEY WORDS: State Government. Regional Planning. Metropolitan Planning. 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